Folha de S. Paulo


Criaturas góticas

"Frankenstein" (1816), de Mary Shelley, e "Drácula" (1897), de Bram Stoker, são clássicos da literatura de terror que acabaram passando para a história como exemplos de um subgênero popular.

Aproveitando o lançamento de excelentes traduções dos dois romances, vale lembrar que eles correspondem a uma vertente importante na evolução da literatura: a ficção gótica, um tipo de narrativa romântica que surgiu como reação ao racionalismo iluminista na Inglaterra do século 18, com Walpole ("O Castelo de Otranto"), e se consolidou no século 19, como imagem em negativo do avanço das ciências.

Com obras ambientadas em castelos, ruínas, ruas e montanhas brumosas, suas personagens são emblemáticas: o humanista ou o cientista assolado por forças ocultas, o nobre soturno, imagem ameaçadora invejada pela burguesia triunfante, ou ainda a virgem frágil e a mulher recatada que sucumbem a desejos associados à perdição.

Divulgação
Fique em casa - criaturas goticas- Novas traduc'oes dos classicos do terror
Winona Ryder e Gary Oldman em "Drácula de Bram Stoker", de Francis Ford Coppola

A tradução da obra de Mary Shelley, com ótima introdução de Maurice Hindle, além de textos dos poetas Byron e Percy Shelley —que foi marido da autora— e do escritor e jornalista Ruy Castro, resgata o subtítulo original, nem sempre estampado nas edições correntes: "Frankenstein ou o Prometeu Moderno".

A referência ao semideus grego, punido por roubar o fogo de Zeus, indica o substrato da trama. O cientista Victor Frankenstein, que cria um novo ser a partir de pedaços de corpos humanos, insere-se em um conjunto de mitos que, desde o casal bíblico Adão e Eva e passando pelo pacto demoníaco de Fausto, fornecem parábolas sobre a ambição desmedida do homem na busca de rivalizar com os deuses.

"Drácula" traz marcas de outro momento das investigações científicas, muito bem pontuadas pelo ensaio introdutório do tradutor Alexandre Barbosa de Souza, que assina esclarecedoras notas dessa "edição comentada" em capa dura: as experiências com hipnose de Charcot (mestre de Freud) e as teorias sobre magnetismo animal de Mesmer, num momento em que a atenção para fenômenos psíquicos, como frenesi nervoso e delírio histérico, preparam o campo para a psicanálise.

E se o conde Drácula desaparece por boa parte da trama, esse dado de modernidade literária (um protagonista que exerce sua força como signo ausente de perversões recalcadas) se estende à estrutura do romance, com vários narradores que, por meio de cartas, diários e até transcrições fonográficas, criam a atmosfera de uma ameaça difusa, entre o sobrenatural e o inconsciente. Com Stoker, o romance gótico também se insurge contra a forma linear da narrativa clássica.

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Conexões

LIVROS

Frankenstein ou o Prometeu Moderno — ótimo

AUTOR: Mary Shelley
TRADUÇÃO: Christian Schwartz
EDITORA: Penguin-Companhia (424 págs., R$ 34,90)

Drácula — Edição Comentada — ótimo

AUTOR: Bram Stoker
TRADUÇÃO: Alexandre Barbosa de Souza
EDITORA: Zahar (466 págs., R$ 64,90)

As Vidas e as Mortes de Frankenstein — muito bom

A autora brasileira de ficções sobre Poe e Kafka cruza aqui a história de Mary Shelley e sua criatura com a de um alquimista do século 17 e a de uma pesquisadora contemporânea, atualizando a tentação prometeica do mito de Frankenstein.

AUTOR: Jeanette Rozsas
EDITORA: Geração (2015, 176 págs., R$ 23)


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