Folha de S. Paulo


Amarga clarividência

Clássico de Dino Risi, "Perfume de Mulher" (1974) é desses filmes que mostram como gêneros populares, como melodrama e comédia, sempre trazem meditações sérias nos momentos mais altos do cinema italiano.

Em boa parte, isso se deve à presença de Vittorio Gassman no papel principal, para o qual Risi declarou ter pensado em convidar primeiramente Marlon Brando e Ugo Tognazzi. Gassman tem a intensidade do primeiro e o caráter ao mesmo tempo bufo e tragicômico do segundo. Não por acaso, receberia o prêmio de melhor ator no festival de Cannes de 1975.

A narrativa descreve a viagem de Turim a Nápoles feita pelo capitão reformado Fausto Consolo —que, após acidente com explosivos, ficou cego e maneta (ele leva uma prótese)— com um jovem militar, Ciccio, que lhe serve de guia. De saída, a relação entre os dois é caricatural, com o veterano humilhando o cadete e procurando provar que ainda mantém a altivez, a força e a elegância que lhe valeram sucesso entre as mulheres.

Divulgação

Aliás (e isso explica o título do filme), Fausto se gaba de perceber a presença de uma bela presença feminina apenas pelo odor de seu perfume e chega mesmo a distinguir uma mulher de um travesti melhor que seu imberbe assistente.

Durante o percurso de trem, eles passam por Gênova (onde Fausto visita uma prostituta) e por Roma (onde encontra um primo padre). Estas duas estações —o profano e o sacro— são a chave de um filme que esconde, sob o exasperado e arrogante hedonismo de seu protagonista, um pessimismo desesperado, que percebemos pelo olhar de Ciccio.

No começo, Fausto ironiza a comiseração alheia: "Você acha que sofro porque não posso mais ver um pôr do sol ou a cúpula do Vaticano? O sexo, as coxas, duas belas nádegas, eis a única religião, a única ideia política, a verdadeira pátria de um homem", diz o capitão ao cadete.

No encontro com o primo religioso, porém, ele diz que a cegueira poderia ser, do ponto de vista religioso, uma bênção (a purgação dos pecados em vida), ou, do ponto de vista sensorial, uma sorte (já que o cego mergulharia mais profundamente na memória e na imaginação) —conclui, porém, que ele mesmo, se visse, contemplaria apenas desertos: "Eu também sou uma pedra".

O destino final da viagem revela, no encontro com outro militar cego e com a jovem filha de um amigo que se apaixonara por ele (a belíssima Agostina Belli), o desígnio suicida e a altivez por trás da fanfarronice erótica da personagem —num filme que encerra uma amarga clarividência sobre a precariedade humana.

CONEXÕES

Perfume De Mulher - ótimo

Direção: Dino Risi
Distribuidora: Magnus Opus (R$ 39,90)

Perfume De Mulher - muito bom

Direção: Martin Brest
Distribuidora: Universal (1992, DVD R$ 19,99 e Blu-ray R$ 39,99)

"Remake" do clássico de Dino Risi tem Al Pacino, ator à altura de Gassman, no papel principal.

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LIVRO

São Paulo Infinita - muito bom

Juliana Russo (GG, 104 págs., R$ 69)

A artista plástica Juliana Russo faz um percurso por São Paulo através de desenhos, partindo do mais familiar (sua rua, na zona oeste) ao mais inóspito (a periferia da metrópole), passando por praças e museus. O traço delicado salienta detalhes emblemáticos da arquitetura e de interiores de bares e restaurantes, numa linda crônica visual da cidade.

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FILME

O Rato Que Ruge - ótimo

Jack Arnold (Colecione Clássicos, R$ 37,90)

A ideia dessa comédia pacifista de 1959, com Peter Sellers, é genial: um pequeno ducado europeu em crise resolve declarar guerra aos Estados Unidos para capitular e receber auxílio econômico. O plano dá errado e eles acabam se apoderando de uma bomba letal com que chantageiam a potência. Uma sátira da Guerra Fria e do imperialismo com a marca do humor inglês.

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DISCO

R. Strauss - Verdi: String Quartets - ótimo

Quarteto Enso (Naxos, R$ 42, importado)

Se Verdi e Strauss são conhecidos pelas óperas e por obras monumentais do romantismo tardio, essa gravação do quarteto de cordas Enso mostra repertório inusitado: peças de câmara, com tudo o que isso significa de rigor estrutural e contenção formal. Inclui ainda obras camerísticas de Puccini, outro nome célebre da ópera.


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