Folha de S. Paulo


Os sublimes e os decadentes

Dois livros lançados quase simultaneamente tratam da música erudita sob a Alemanha nazista e sob os regimes comunistas do Leste Europeu. Num deles, "A Mais Alemã das Artes", Pamela M. Potter extrai tese polêmica da cena musical do país após a ascensão de Hitler.

Não faltam referências às já conhecidas perseguições a compositores judeus e à difamação do jazz, ambos vistos como "degenerados".

O mais importante, porém, é que a pesquisadora norte-americana vê na musicologia germânica —ainda hoje dominante no mundo— um esforço anterior ao nazismo de salientar a centralidade ocidental da linhagem que leva de Bach a Wagner.

Ao contrário da visão convencional, que vê no Terceiro Reich ruptura radical com a República de Weimar, Potter enxerga continuidade entre os dois períodos naquilo que diz respeito à formação de uma "ciência musical", que teria pavimentado o terreno para teorias pseudocientíficas sobre a superioridade racial ariana: a música como sublimação de uma "Alemanha profunda" que o nazismo viria manipular.

Igualmente polêmico é o posfácio brasileiro de Ibaney Chasin, que dá mais uma volta no parafuso e vê nas vanguardas dodecafônicas, hostilizadas pelos nazistas, a depuração cerebral do subjetivismo romântico, propondo que a noção da música absoluta, abstrata —valorizada como tendência moderna até mesmo por pensadores de esquerda—, é construção ideológica que reitera a "superioridade presumida dos alemães".

Já "Sons por Detrás da Cortina - Música no Leste Europeu Durante a Guerra Fria", de Marco Aurélio Scarpinella Bueno, é um levantamento minucioso dos compositores que atuaram sob os regimes policiais de países comunistas, como Romênia e a ex-Tchecoslováquia. Os menos conhecidos aparecem quase como verbetes de dicionário, num livro que faz análises aprofundadas das flutuações nas obras dos húngaros Ligeti e Kurtág ou nas dos poloneses Lutoslawski e Penderecki.

O resultado é um nuançado panorama artístico da Cortina de Ferro, onde "realismo socialista" e neoclassicismo (imposições populistas contra os "formalistas decadentes") não impediram que, entre exílios e ostracismos, os compositores criassem festivais e centros de experimentação à prova de qualquer supremacia política ou estética.

Conexões

LIVROS

A Mais Alemã Das Artes - Ótimo
Autora: Pamela M. Potter
Tradutor: Rainer Patriota
Editora: Perspectiva/Editora UFPB (496 págs., R$ 89)

Sons Por Detrás Da Cortina - Ótimo
Autor: Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Editora: Intermeios (340 págs., R$ 50)

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LIVRO

A Cidade Das Letras - Ótimo

Ángel Rama; tradução de Emir Sader (Boitempo Editorial, 140 págs., R$ 38)

Nesse clássico do pensamento latino-americano e da teoria literária, o uruguaio Ángel Rama (1926-1983) examina a formação cultural do continente contrastando os projetos "civilizatórios" e urbanísticos dos colonizadores com a atuação de intelectuais e escritores. Esta edição brasileira tem prefácio do peruano Mario Vargas Llosa e verbetes sobre os autores abordados por Rama.

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DISCO

El Sistema 40 - A Celebration - Muito bom

Orquestra Sinfônica Simón Bolívar e Gustavo Dudamel (Universal / Deutsche Grammophon, 2015, R$ 32,90)

Implantado na Venezuela em 1975, El Sistema é uma ampla e bem-sucedida ação de ensino público de música clássica, do qual derivaram várias formações. A Sinfônica Simón Bolívar, principal delas, é regida aqui por
Dudamel —maestro egresso do programa— na celebração dos 40 anos do projeto, com peças que vão de Beethoven a compositores latino-americanos. Competente e comovente.

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FILME

Leviatã - Muito bom

Andrey Zvyagintsev (Imovision, R$ 39,90)

Em cidade pesqueira russa, pequeno empresário enfrenta conluios políticos que dizimam os seus negócios e corroem a lealdade dos amigos e a vida privada. O título remete ao livro de Hobbes (1588-1679) sobre o Estado moderno, por sua vez inspirado no monstro mitológico que aparece, aqui, na forma de carcaças de baleia espalhadas na praia, como metáfora fantasmagórica do país de Putin.


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