Folha de S. Paulo


Cantos inéditos

Hoje, pouca gente lê Pablo Neruda (1904-1973) no Brasil. O chileno, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1971, tem apelo popular (alguns diriam: populista, por conta de seu caráter político) e um estilo inflamado que soa gongórico, grandiloquente, numa cena em que os escassos leitores de poesia foram cultivados por noções de rigor formal e economia retórica.

Da poesia ao rés-do-chão, desinflada, de Manuel Bandeira e Drummond (capaz de compor uma cosmologia a partir de uma estrada pedregosa) ao construtivismo de Oswald de Andrade, João Cabral e dos concretos, o Brasil acabou criando ojeriza ao ímpeto lírico —e até um gênio universal como Fernando Pessoa é muitas vezes lido com a reticência que também atinge os versos suntuosos de Cecília Meireles e o orfismo de Jorge de Lima.

Tudo isso para dizer que a publicação de inéditos de Neruda deve, no mínimo, nos predispor a quebrar resistências. Os 21 poemas de "Teus Pés Toco na Sombra" foram encontrados no espólio do autor de "Canto Geral", manuscritos em cadernos escolares, cardápios e programas musicais dos navios em que viajava o escritor, que passou boa parte da vida exilado.

Ria Novosti/AFP
O Chileno Pablo Neruda
O Chileno Pablo Neruda

Sem títulos e com lacunas indicadas pelos editores, muitos foram excluídos de coletâneas —caso do que começa com os versos "Rodei por sob os cascos, os cavalos/ passaram sobre mim como ciclones", sobre a repressão ao movimento estudantil chileno.

Por compreenderem mais de duas décadas, do início dos anos 1950 até sua morte, variam muito de forma —odes, poemas de imagética surrealista, versos entrecortados—, mas têm em comum a indignação cívica e a celebração da natureza andina, do povo de mineradores e pescadores, da origem camponesa da musa do poeta.

Num dos mais belos, o escritor, já maduro, "em plena cordilheira de minha vida", interpela a juventude e afirma os valores que forjaram essa obra a ser redescoberta: "há que ser na vida/ bom foguista (...) tua obrigação/ é de carvão e fogo,/ tens/ que sujar as mãos/ (...) com fumaça/ da caldeira".

Em tempo: "Teus Pés Toco na Sombra" é magnificamente traduzido por Alexei Bueno, poeta de feição clássica, que navega desenvolto e erudito contra a maré descrita no início da coluna.

LIVRO

Teus Pés Toco Na Sombra E Outros Poemas Inéditos
Autor: Pablo Neruda
Tradutor: Alexei Bueno
Editora: José Olympio (2015, 144 págs., R$ 35)

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FILME

As Férias Do Sr. Hulot
O filme de 1953 é o primeiro com Sr. Hulot, personagem cômico criado e interpretado pelo francês Jacques Tati (1907-1982). Esguio, sempre de gabardine, chapéu e cachimbo, ele quase não fala: só contempla a comédia humana com lirismo e ironia. Aqui, o foco é um hotel em que os veranistas vivem situações ridículas, mostrando uma França que se moderniza e massifica.

Jacques Tati (Cult Classic, R$ 34,90)


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