Folha de S. Paulo


Disco com músicas da Síria mostra face moderna da cultura árabe

"As músicas apresentadas neste CD foram compostas há quase duas décadas, em tempos de paz, quando tudo parecia estável e permanente", escreve o flautista Flavio Metne no livreto encartado no disco "Poemas Musicais do Oriente Médio – Musiqa Suriyya". A expressão "tempos de paz" se refere ao período de relativa estabilidade política da Síria que precedeu o atual conflito desencadeado a partir da Primavera Árabe (2011) e foi intensificado com a entrada em cena dos guerrilheiros do Estado Islâmico.

Estes "poemas musicais" apresentam o rosto iluminista, universalista, da cultura árabe, quase sempre oculto pelo extremismo sem fim. O disco traz composições que retomam formas e instrumentos tradicionais, porém dentro de uma linguagem moderna e autoral —duas noções (modernidade e expressão individual) massacradas pelo irracionalismo reinante no Oriente Médio.

O projeto foi idealizado nos anos 1990 por dois brasileiros que estavam na Síria à época: Rosalie Helena de Souza Pereira, pesquisadora de filosofia árabe e medieval, e Metne, que lecionou no Instituto Superior de Música de Damasco no momento em que para lá confluíam artistas e musicólogos de vários lugares do mundo.

Eles reuniram um grupo de virtuoses para gravar, em 1995, esse repertório deslumbrante de músicas sírias, que só agora sai em disco e apresenta uma produção contemporânea amplamente ignorada no Brasil. São 12 faixas, todas instrumentais, que alternam improvisos (a cargo dos intérpretes) e peças dos compositores Shafi Badreddin (radicado em Luxemburgo) e Elias Bachoura (hoje em Bruxelas, Bélgica).

Nos improvisos, aparecem "modos" orientais ("hijaz", "rast", "nahawand", "baiat"), em que intervalos e microtons normalmente ausentes na escala ocidental brotam de instrumentos como "qanun" (semelhante ao címbalo), "nay" (flauta em forma de cana, de timbre peculiar) e "buzuq" (variante do alaúde, também presente nos arranjos).

Se essas variações remetem às escalas do folclore com a eloquência pessoal conferida pelo improvisador-compositor, as obras de Badreddin e Bachoura introduzem elementos da música erudita de câmara (harmonias e contrapontos de violino, viola, violoncelo e clarinete) em formas tradicionais, como o cíclico "sama'i".

Um disco hipnotizante e luminoso, que resgata um passado perdido e um futuro cada vez mais utópico.

POEMAS MUSICAIS DO ORIENTE MÉDIO ***
ARTISTAS: Elias Bachoura e Shafi Badreddin
DISTRIBUIDORA: Tratore (R$ 25)

LIVRO
Poemas ***
Antologia do sírio Adonis (pseudônimo de Ali Ahmad Said Esber, nascido em 1930) realiza no plano poético o cruzamento entre tradição árabe e modernidade.
AUTOR: Adonis
TRADUÇÃO: Michel Sleiman
EDITORA: Companhia das Letras (2012, 256 págs., R$ 45)

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LIVRO

SOBRE A ARTE BRASILEIRA ***
Vários autores. Org.: Fabiana Werneck Barcinski (WMF Martins Fontes, 368 págs., R$ 128)
Da pintura rupestre até o concretismo e o neoconcretismo, esse livro é bem mais do que uma história da arte brasileira. Diferentes ensaístas propõem reflexão vigorosa sobre nossa modernidade inacabada e sobre uma identidade em que "nada nos é estrangeiro, pois tudo o é" —na frase de Paulo Emílio Salles Gomes citada na excelente introdução de Francisco Alambert.

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DISCO

MOZART: CONCERTOS PARA PIANO N° 18 E 19 ***
Mitsuko Uchida com a Orquestra de Cleveland (Decca, R$ 67,90, importado)
O concerto para piano é o gênero em que Mozart atingiu o máximo da excelência, e Mitsuko Uchida talvez seja sua maior intérprete na atualidade. Dentro das gravações que vem realizando desse repertório, composto por 27 obras, este registro tem um detalhe: a própria pianista japonesa rege, de seu instrumento solista, os músicos da orquestra de Cleveland.

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FILME

ENSAIO DE ORQUESTRA **
Federico Fellini (Spectra Nova, R$ 12,90)
Se "E La Nave" (1983) fez do mundo da ópera uma alegoria do colapso da era pré-Primeira Guerra, este filme de 1978 faz do meio orquestral a metáfora de uma Itália caótica, assolada por dissonâncias sociais e lutas político-sindicais (por sinistra coincidência, estreou no ano do sequestro e assassinato do ex-primeiro ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas).


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