Folha de S. Paulo


Em livro, psicólogo espanhol analisa fraudadores compulsivos

Durante décadas, o escritor Günter Grass, prêmio Nobel de Literatura em 1999, ocultou seu passado nazista sob um halo de autoridade moral e intelectual da esquerda alemã, perseguindo políticos suspeitos de, como ele mesmo, terem colaborado com o regime hitlerista (o autor de "O Tambor" se alistou como voluntário na Marinha do Terceiro Reich em 1943).

Nos anos 1990, o francês Jean-Claude Romand assassinou a família depois de que se descobriu que durante cerca de 15 anos levara uma vida absolutamente fictícia, passando-se por médico da Organização Mundial da Saúde (episódio reconstituído no romance "O Adversário", de Emmanuel Carrère).

Reprodução

Mais recentemente, o jornalista Alexis Debat publicou numa revista francesa de política internacional entrevistas completamente imaginárias com personalidades como Kofi Annan, Bill Gates, Hillary Clinton e o então candidato à presidência dos EUA Barack Obama (esta última levantou as suspeitas que o desmascararam).

Esses casos de ocultação da verdade, mitomania e fraude estão entre os tantos descritos e analisados por José María Martínez Selva em "A Grande Mentira na Mente dos Fabuladores Mais Famosos da Modernidade". O psicólogo espanhol vai do general grego Alcibíades (autêntico vira-casaca nas guerras entre Atenas e Esparta) ao caso Watergate, do vigarista Victor Lustig (que vendeu a torre Eiffel a um empresário da sucata) ao doping de atletas e aos "hackers" da internet.

Martínez Selva distingue a "mentira cotidiana, social ou piedosa" da "grande mentira" do título, cujas consequências afetam grande número de pessoas ou que escondem culpas e vergonhas de proporções abissais.

Sendo obra de um psicólogo, o livro investiga sobretudo as razões da falácia compulsiva na política, nas ciências e no esporte, incluindo os casos em que a mentira consiste em assumir um delito que não se cometeu, com o propósito de expiar culpas inconscientes.

Mas sua linguagem é tão fluente e despida de jargões "psi" que acaba resultando num delicioso catálogo de falcatruas —com o risco de nos fazer simpatizar com os falsários. Afinal, muitos desses fabricantes de quimeras têm genuíno talento romanesco —como o jornalista Stephen Glass, que "revelou" uma seita de evangélicos que adorava George W. Bush. "Se non è vero, è ben trovato".

LIVROS

A GRANDE MENTIRA ***
AUTOR: José María Martínez Selva
TRADUÇÃO: Nicolás Campanário e Luciana Pudenzi
Editora: Perspectiva (408 págs., R$ 86)

IMPOSTURAS INTELECTUAIS ***
Reconstitui caso do artigo fraudulento enviado a uma revista de filosofia com propósito de parodiar e denunciar jargão pseudocientífico de pensadores pós-modernos.
AUTOR: Alan Sokal e Jean Bricmont
TRADUÇÃO: Max Altman
EDITORA: Record (2006, 322 págs., R$ 58)

POR QUE AS PESSOAS ACREDITAM EM COISAS ESTRANHAS ***
Crença em extraterrestres, teses criacionistas e negação do Holocausto estão entre as bobagens dissecadas pelo humor cético de Shermer.
AUTOR: Michael Shermer
TRADUÇÃO: Luis Reyes Gil
EDITORA: JSN (2001, 384 págs., R$ 65)

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LIVRO

GUERRAS SANTAS ***
Philip Jenkins; tradução de Carlos Szlak (Leya, 352 págs., R$ 44,90)
Definir a natureza de Cristo, saber se o corpo de Jesus é o corpo de Deus, parece discussão bizantina. E é, ou quase: foi no Concílio de Calcedônia, situada em frente a Bizâncio, que aconteceram, no século 5º, as guerras teológicas e as subjacentes disputas geopolíticas analisadas aqui pelo historiador galês com olhar para os cismas posteriores da Igreja.

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DISCO

PEDRA CIGANA ***
Ayran Nicodemo (A Casa, R$ 25)
Mineiro atuante na Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Nicodemo grava sete composições próprias para violino solo inspiradas na música cigana —além de arranjo para "Hora de la Munte" (do folclore romeno). A interpretação é profunda e virtuosística, com a pulsação das danças ciganas e uma nostalgia característica dos Bálcãs. Arrebatador.

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FILME

PEDALANDO COM MOLIÈRE ***
Philippe Le Guay (Imagem, R$ 39,90)
Fabrice Luchini faz um ator rabugento que, aposentado num balneário, é procurado por um colega (Lambert Wilson) que atua em uma minissérie de TV e quer persuadi-lo a montar "O Misantropo", de Molière. Durante uma semana, eles ensaiam a clássica comédia, cujos diálogos ácidos se misturam com as diatribes entre os atores. Engenhoso, com interpretações sublimes.


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