Folha de S. Paulo


Antologia de Borges cria precursores do realismo fantástico latino-americano

Uma coletânea de contos que remonta ao romano Petrônio e ao francês Rabelais, passa pelo chinês Tsao Hsue-Kin e pelo japonês Akutagawa e chega ao norte-americano Poe e ao tcheco Kafka é considerada, contra todas as evidências, um clássico da literatura latino-americana. Ou melhor, daquela linhagem a que pertencem os organizadores dessa "Antologia da Literatura Fantástica": os portenhos Silvina Ocampo, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares.

Os dois últimos dispensam apresentações. Já Silvina foi a irmã mais nova de Victoria Ocampo, intelectual que, a partir da mítica revista "Sur", atraiu a Buenos Aires escritores como Camus e Drieu la Rochelle. E foi da "Sur" que saiu parte dos contos recolhidos na antologia, publicada inicialmente em 1940 e ampliada em 1965, quando atingiu os 75 textos vertidos na edição brasileira.

Divulgação
Foto do escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) durante viagem à Sicília (Itália), em 1984
Foto do escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) durante viagem à Sicília (Itália), em 1984

Importante: esses contos fantasmagóricos, entre o gótico e a ficção científica, foram traduzidos da edição em espanhol, e não das línguas originais, segundo um desejo dos organizadores que, mais do que idiossincrasia, revela o espírito da antologia.

Pois se Borges e Bioy transtornaram a noção de autoria, várias narrativas da coletânea sofrem discretas alterações. Basta um exemplo: ao traduzirem um conto mefistofélico do inglês Holloway Horn, eles não apenas trocam o título original, "O Velho", por "Os Vencedores de Amanhã", como mudam o apelido do protagonista de "Battler" (batalhador) para "Knocker" (nocauteador), introduzindo assim uma discrepância difícil de identificar num autor obscuro, que mais parece invenção da dupla.

Tais intervenções são um tormento para leitores ciosos das fontes bibliográficas. Mas fazem as delícias daqueles que compreendem que a antologia cria, borgeanamente, os precursores desse momento singular da literatura do século 20, em que o encontro da imaginação e da erudição, com fábulas que incorporam o ato da leitura à matéria narrativa, lançou as bases do realismo fantástico e do romance pós-moderno.

LIVROS

ANTOLOGIA DA LITERATURA FANTÁSTICA ****
ORG.: Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo
TRADUÇÃO: Josely Vianna Baptista
EDITORA: Cosac Naify (448 págs., R$ 69)

SEIS PROBLEMAS PARA DOM ISIDRO PARODI & DUAS FANTASIAS MEMORÁVEIS ****
Escritas sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq, essas narrativas de suspense escritas em 1946 e 1967 marcam a história das falcatruas autorais de Borges e Bioy.
AUTORES: Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares
TRADUÇÃO: Maria Paula Gurgel Ribeiro
EDITORA: Globo (2008, 200 págs., R$ 30)

FICÇÕES ****
O livro de 1941 inclui, entre outros paradoxos ficcionais, "Pierre Ménard, Autor do Quixote", em que o protagonista "reinventa" o livro de Cervantes ao reescrevê-lo "ipsis litteris" --operação textual que ironiza noções de cópia e original.
AUTOR: Jorge Luis Borges
TRADUÇÃO: Davi Arrigucci Jr.
EDITORA: Companhia das Letras (2007, 176 págs., R$ 37)

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FILME

AS VINHAS DA IRA ***
John Ford (20th Century Fox Home Entertainment, R$ 19,90)
Baseado no romance de John Steinbeck (de 1939, um ano antes do filme de Ford), narra a saga de uma família que, após perder a propriedade, migra para a Califórnia durante a Grande Depressão dos anos 1930. A "Rota 66" da mitologia ianque ganha acentos bíblicos, em detrimento do pessimismo de Steinbeck em relação ao Eldorado norte-americano.

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DISCO

THE WIGMORE HALL RECITAL ****
Maria João Pires e Antonio Meneses (Deutsche Grammophon, R$ 84,90)
Gravado na sala de Londres que dá título ao disco, esse recital reitera o lugar incontornável desse duo formado pela pianista portuguesa Maria João Pires e pelo violoncelista brasileiro Antonio Meneses. No programa, peças de Schubert e Brahms (dentro do repertório romântico privilegiado pelos intérpretes), além de arranjo feito a partir de Bach.

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LIVRO

O MUNDO INSONE ***
Stefan Zweig; tradução de Kristina Michahelles (Zahar, 312 págs., R$ 54,90)
Organizado pelo jornalista Alberto Dines, reúne ensaios e conferências do escritor austríaco, que se suicidou no Brasil em 1942, na condição de refugiado do nazismo. Entre meditações políticas e literárias, destaca-se a memória de sua amizade com Freud, em comovente discurso pronunciado na cerimônia fúnebre do pensador e criador da psicanálise.


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