Folha de S. Paulo


A mais antiga das tragédias gregas, "Os Persas" ganha duas edições sublimes

Comentando obras literárias baseadas em mitos da Antiguidade, Stendhal escreveu (no prefácio de suas "Crônicas Italianas") que "os heróis de Homero ou de Racine, os Aquiles e os Agamenons, começam a me parecer do gênero bocejante". Para o autor de "O Vermelho e o Negro", só importava aquilo que retratava o homem de seu tempo, deuses e semideuses lhe pareciam demasiado distantes dos problemas concretos.

Deixando de lado que Stendhal era um farsante genial, que adotou dezenas de pseudônimos (seu verdadeiro nome era Henri-Marie Beyle) e bem pode ter falseado o desprezo pelos antigos para impor sua própria literatura, é certo que pelo menos uma peça grega --"Os Persas", de Ésquilo-- contraria seu diagnóstico.

Afinal, trata-se de caso único, ao menos entre os dramas gregos que chegaram até nós, de uma tragédia que trata de episódio histórico, sendo praticamente contemporânea da ação que narra. No caso, a derrota de Xerxes, rei dos persas, na batalha de Salamina (480 a.C.), selando o triunfo dos gregos sobre os invasores nas chamadas Guerras Médicas.

Marina Mesquita/Folhapress
Ruínas do complexo de palácios que abrigou a dinastia Aquemênida, construído há, aproximadamente, 2.530 anos, em Persépolis, no Irã
Ruínas do complexo de palácios que abrigou a dinastia Aquemênida, construído há, aproximadamente, 2.530 anos, em Persépolis, no Irã

Ésquilo, que dez anos antes havia participado da batalha de Maratona (contra o rei Dario, pai de Xerxes), narra a história do ponto de vista dos vencidos. A ação se dá no palácio de Susa, capital da Pérsia, onde chegam as notícias da derrota de Xerxes e onde o espectro de Dario aparece para invectivar contra a "hybris", a desmedida, que levara à punição de suas ambições de unir Ocidente e Oriente.

Por milagre dos deuses do Olimpo, surgem agora duas magníficas traduções de "Os Persas", cujos aparatos críticos mostram como Ésquilo, ao representar o triunfo grego para o público ateniense, inoculou ali um antídoto contra a imprudência que se anunciava na democracia de Péricles.

A tradução de Junito Brandão, num pequeno volume em capa dura, inclui transcrição de uma gravação inédita (em VHS), em que o helenista morto em 1995 nos dá uma aula indispensável. Já a versão de Trajano Vieira traz densa reflexão poética sobre o modo como Ésquilo incorporou elementos orientais da linguagem dos vencidos, fazendo de "Os Persas" uma oração fúnebre cuja "altivez luxuriante" serve de espelho irônico da decrepitude dos impérios. Stendhal aprovaria essa maneira antiga de falar ao presente.

LIVROS

OS PERSAS ****
AUTOR: Ésquilo
TRADUÇÃO: Junito Brandão
EDITORA: Mameluco (360 págs., R$ 54)

OS PERSAS ****
AUTOR: Ésquilo
TRADUÇÃO: Trajano Vieira
EDITORA: Perspectiva (144 págs., R$ 34)

LIVROS

O MELHOR DO TEATRO GREGO ****
Esta edição comentada, em capa dura, reúne parte essencial do teatro grego: a comédia "As Nuvens" (Aristófanes) e as tragédias "Prometeu Acorrentado" (Ésquilo), "Édipo Rei" (Sófocles) e "Medeia" (Eurípides).
AUTORES: Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes
TRADUÇÃO: Mário da Gama Kury
EDITORA: Zahar (2013, 392 págs., R$ 59,90)

EROS NA GRÉCIA ANTIGA ****
O helenista suíço descreve as mutações e encarnações do deus do erotismo na mitologia, na poética, na filosofia e nos costumes da Grécia Antiga.
AUTOR: Claude Calame
TRADUÇÃO: Isa Etel Kopelman
EDITORA: Perspectiva (2013, 264 págs., R$ 75)

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DISCO

MARTINU: PIANO TRIOS ****
Arbor Piano Trio (Naxos, R$ 33,60)
Se há um compositor a ser redescoberto e incluído com maior frequência nos programas de concerto, trata-se do tcheco Bohuslav Martinu (1890-1959). E não há melhor forma de conhecê-lo do que ouvir sua genial música de câmara, como esses trios para piano, violino e violoncelo, de modernidade atravessada pela pulsação melódica do folclore da Boêmia e da Morávia.

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FILMES

A FAMÍLIA DAS CORDAS ****
Marcelo Machado (Selo Sesc SP, R$ 30)
Com roteiro e apresentação do crítico musical João Marcos Coelho, este documentário alterna depoimentos de músicos brasileiros (ou radicados no Brasil) sobre o violino, a viola, o violoncelo e o contrabaixo, com soberbas interpretações. O repertório foge do óbvio e inclui peças de Schnittke e do grego Dimos Goudaroulis (um dos entrevistados).

BARBARA ****
Christian Petzold (Europa, locação)
Na ex-Alemanha Oriental, uma médica vigiada pelo serviço secreto vai trabalhar num hospital do interior, onde planeja fugir com o amante, mas se envolve com um dos colegas. Tudo é narrado com uma aridez impiedosa, graças à atuação notável de Nina Hoss, que incorpora a cada gesto a atmosfera sufocante da repressão comunista.

Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "Barbara"

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