Folha de S. Paulo


Terra devastada

"O poeta tira espaço do sacerdote e a poesia torna-se uma revelação rival da escrita religiosa", escreve Octavio Paz a propósito da ambição romântica de fazer da poesia um sucedâneo dos mitos e, do poeta, um demiurgo, um criador de mundos. E essa é uma das tantas sentenças flamejantes que lemos ao longo de "Os Filhos do Barro".

O ensaio do escritor e intelectual mexicano, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1990, acaba de ser republicado com nova tradução, na esteira do lançamento de "O Arco e a Lira" (outro clássico do ensaísmo literário contemporâneo).

Seus seis textos foram apresentados em 1972 durante as Charles Eliot Norton Lectures -ciclo de conferências na Universidade Harvard do qual já participaram escritores como Eliot, Borges e Calvino, ou compositores como Stravinsky e Berio. E se essa lista de nomes indica a estatura da reflexão, o formato original de palestra garante uma fluência cativante, bem distante da aridez das explanações acadêmicas.

Hector Garcia /Reuters
Octavio Paz (1914-1998) e a mulher, Marie-José, na Cidade do México
Octavio Paz (1914-1998) e a mulher, Marie-José, na Cidade do México

Em "Os Filhos do Barro", Paz define a modernidade, de modo tão sintético quanto luminoso, como "tradição da ruptura" -como obsessão pela mudança, como ímpeto de desalojar a "tradição imperante" que acaba por criar uma "outra tradição".

Paz não limita a noção de ruptura nem às vanguardas do século 20, nem ao aspecto formal das revoluções estéticas. Para o poeta mexicano, "a modernidade tem início quando a consciência da oposição entre Deus e Ser, entre razão e revelação, se mostra realmente insolúvel" -algo que só pôde acontecer na tradição ocidental, com a noção judaico-cristã de um tempo irreversível (em contraposição ao tempo cíclico de outras culturas).

Paz vê uma continuidade, sem demarcações escolares, entre romantismo, simbolismo e modernismos, em que o tema da "morte de Deus" se transforma em mito e alimenta a criação. Sob um céu vazio de divindades, a poesia se transforma em "religião original da humanidade", a arte molda, por meio de analogias inconcebíveis para a religião ou a ciência, uma nova cosmologia -porém uma cosmologia precária, feita de barro e corroída pela ironia moderna, que faz o artista caminhar sempre sobre terra devastada.

LIVRO
OS FILHOS DO BARRO **
AUTOR: Octavio Paz
TRADUÇÃO: Ari Roitman e Paulina Wacht
EDITORA: Cosac Naify/Fondo de Cultura Económica
QUANTO: R$ 49 (2013, 190 págs.)

LIVRO
O ARCO E A LIRA **
Essa suntuosa meditação sobre a palavra poética inclui o ensaio "Os Signos em Rotação", preparando o terreno para "Os Filhos do Barro".
AUTOR: Octavio Paz
TRADUÇÃO: Ari Roitman e Paulina Wacht
EDITORA: Cosac Naify/Fondo de Cultura Económica
QUANTO: R$ 69 (2012, 352 págs.)

LIVRO
A LITERATURA E OS DEUSES **
Nessa série de conferências, o escritor e ensaísta italiano vê na potência transfiguradora da linguagem literária um pacto com divindades mitológicas.
AUTOR: Roberto Calasso
TRADUÇÃO: Jônatas Batista Neto
EDITORA: Companhia das Letras
QUANTO: R$ 34 (2004, 160 págs.)

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DISCO
LA PASIÓN SEGÚN SAN MARCOS *
Osvaldo Golijov (Deutsche Grammophon, R$ 168,30, CD e DVD)
Após incorporar a tradição klezmer à música de câmara, o argentino Golijov amplia sua paleta em "A Paixão Segundo São Marcos". Tendo como fundo os oratórios de Bach, ritmos latinos levam a cena cristã ao terreiro e à sinagoga -num sincretismo vibrante registrado, em disco, pela Orquestra Jovem Simón Bolívar e, no DVD, em representação regida por Robert Spano.

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FILME
ANTONIO GRAMSCI: OS DIAS DO CÁRCERE *
Lino Del Fra (Versátil, R$ 44,90)
Um marxista que passou a maior parte da vida na cadeia não parece boa matéria-prima para o cinema. Esse filme de 1977, porém, transpõe para os diálogos a retórica persuasiva dos "Cadernos do Cárcere" de Gramsci (1891-1937), fazendo do microcosmo prisional e de raros "flashbacks" um teatro tenso do movimento comunista italiano durante o fascismo.

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LIVRO
CÁCHTANKA **
Anton Tchékhov; tradução de Tatiana Belinky (Globinho, 40 págs., R$ 39,90)
Nesse conto infantojuvenil do russo Tchékhov, ilustrado por Rebeca Luciani, a cachorrinha Cachtánka se perde de seu dono marceneiro e é adotada por um artista circense. Na nova casa, convive com um gato, um ganso e uma porquinha, mas quer voltar à antiga família, numa comovente fábula sobre adaptação e fidelidade, em que o faro canino se torna o idioma da nostalgia.


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