Folha de S. Paulo


Em "Delizia!", escritor vê a história da Itália através da culinária

Quem tem rudimentos de italiano costuma se irritar com os erros idiomáticos nos cardápios de restaurantes de culinária peninsular. Mas incomoda igualmente o uso indiscriminado de termos como cantina, osteria ou trattoria, pois eles guardam nuances insuspeitadas sobre as tensões entre mundo urbano e rural na Itália.

É esse o tema de "Delizia! - A História dos Italianos e Sua Comida", de John Dickie. Autor de "Cosa Nostra", sobre a máfia siciliana, o escritor e pesquisador britânico faz um percurso que remonta à Palermo de 1154 (onde os muçulmanos introduzem a "itryya", um precursor da massa seca de trigo duro) e chega à Turim de 2006, quando acontece uma conferência do movimento Slow Food (reação à globalizada fast food).

Divulgação
Cena de
Cena de "A comilança" (1973), do diretor italiano Marco Ferreri

Há capítulos dedicados à alta gastronomia da Roma renascentista e à comida popular da Bolonha barroca --e essa periodização vinculada a cidades constitui a tese central dessa instigante crônica cultural.

A tese de Dickie, que percorre de maneira convincente cada capítulo, é a de que "a culinária italiana é uma culinária urbana", na contramão da idealização de suas raízes camponesas. Superficialmente, a prova disso está nos nomes de pratos associados a cidades, como bisteca à fiorentina ou pesto genovês. Mas "Delizia!" vai bem além da pesquisa culinária.

Dickie não se demora em lendas sobre a origem chinesa do macarrão ou na disputa entre França e Itália pela primazia na alta gastronomia. Seu foco é a ideia de civilização que se formou graças à rede comercial mediterrânea, à etiqueta das cortes, à erudição dos humanistas italianos e a doses generosas de violência política.

Mestres do fogão como os renascentistas Martino de Rossi e Bartolomeo Scappi são sua contrapartida mais hedonista, amalgamando produtos pobres (como as vísceras) a técnicas desenvolvidas pelas elites.

A descrição do conclave papal de 1549 é um pequeno romance de fausto, conspiração e banquetes. E a recuperação da culinária rústica, "contadina", por Mussolini, é apenas uma fábula ideológica que confirma a vocação italiana para a civilidade urbana. Afinal, nem Berlusconi, epígono do "Duce", recusa os prazeres da incomparável "cucina" italiana.

LIVRO
DELIZIA! - A HISTÓRIA DOS ITALIANOS E SUA COMIDA **
AUTOR: John Dickie
TRADUÇÃO: Antonio Vilela
EDITORA: Companhia Editora Nacional (328 págs., R$ 44,90)

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LIVRO
A CABEÇA DO ITALIANO - UMA VISITA GUIADA *
Culinária e restaurantes têm papel de destaque nessa radiografia bem-humorada e irônica sobre uma cultura com "formidável instinto de beleza".
AUTOR: Beppe Severgnini
TRADUÇÃO: Sérgio Mauro
EDITORA: Record (2008, 272 págs., R$ 39)

FILME
A COMILANÇA **
Quatro amigos se reúnem para comer, beber e copular até a morte, numa fábula de humor negro sobre a glutonia como panaceia para o tédio.
DIRETOR: Marco Ferreri
DISTRIBUIDORA: Cinemax (1973, R$ 44,90)

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Divulgação
Cena do filme
Cena do filme "A Noite de São Lourenço", dos irmãos Taviani, que recebeu o Oscar

FILME
A NOITE DE SÃO LOURENÇO **
Paolo e Vittorio Taviani (Magna, R$ 39,90)
Mestres italianos, os irmãos Taviani descrevem o cerco nazista à população de um vilarejo da Toscana, na Segunda Guerra. As reações de medo e solidariedade --incluindo as tensões entre fascistas e resistentes-- adquirem um sentido lírico (em alguns momentos alegórico) de rara beleza no cinema político.

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DISCO
FRANCK & GUARNIERI: OBRAS PARA VIOLINO E PIANO **
Elisa Fukuda e Vera Astrachan (Clássicos, R$ 25)
A sonata para violino e piano do belga César Franck é talvez a mais célebre no gênero e tem sido objeto de várias gravações recentes. O maior feito do disco, portanto, é trazê-la ao lado da "Sonata nº 5" e de pequenos duos do brasileiro Guarnieri, com interpretações intensas da violinista Elisa Fukuda e da pianista Vera Astrachan.

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LIVRO
HISTÓRIA DA MINHA FUGA DAS PRISÕES DE VENEZA *
Giacomo Casanova; tradução de José Miranda Justo (Nova Alexandria, 176 págs., R$ 56)
As memórias de Giacomo Casanova (1725-1798) preenchem milhares de páginas. Nesse volume, foram selecionados os trechos de "História de Minha Vida", em que o libertino e erudito italiano descreve seu encarceramento nos Piombi (a prisão do Palácio dos Doges, em Veneza) e seus rocambolescos planos de fuga.


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