Folha de S. Paulo


Livro reúne ensaios de Milan Kundera com suas afinidades literárias e musicais

"Quando um artista fala de outro, fala sempre (por projeção) de si mesmo e é este todo o interesse do seu julgamento." A frase está no texto de abertura de "Um Encontro", de Milan Kundera, em que o escritor tcheco (naturalizado francês) comenta uma entrevista na qual o pintor Francis Bacon, ao falar do dramaturgo Samuel Beckett, fala muito de si mesmo.

O livro reúne ensaios que tratam ainda de autores como Dostoiévski, Céline, Brecht e García Márquez, sempre de maneira enviesada. Não são textos interpretativos, de crítica literária, mas aproximações oblíquas: tomam um aspecto parcial de um autor, às vezes a frase isolada de um romance, para extrair daí algum sentido --que diz, de modo cifrado, algo sobre o próprio Kundera.

Divulgação
"Um Encontro" reúne ensaios em que Milan Kundera trata de suas afinidades literárias e musicais

Quando ele define Philip Roth como "grande historiador do erotismo americano", como "poeta dessa estranha solidão do homem abandonado diante de seu corpo", é impossível não buscar paralelos nos embates filosófico-sexuais dos protagonistas de "A Insustentável Leveza do Ser".

E, se esse romance, que deu celebridade mundial a Kundera, tinha como pano de fundo a Primavera de Praga (com a consequente invasão soviética da ex-Tchecoslováquia, em 1968), é na música que encontramos o contraponto para sua ficção.

Ao emigrar para a França, em 1975, Kundera passou a colaborar com uma revista musical. No ensaio "A Grande Corrida de um Homem de uma Perna Só", retoma texto anterior em que, procurando difundir a obra de Leos Janácek, descreve a música solitária do conterrâneo como "justaposição vertiginosamente próxima de temas muito contrastados" e como "tensão entre a brutalidade e a ternura". Em outro texto, sobre Xenakis, vê no compositor grego a negação radical da tradição europeia.

Lidos em sequência, os dois ensaios nos falam também de uma literatura que, sem a ousadia formal desses compositores, busca expor as tensões históricas de seu país para, afinal, adotar a língua francesa como idioma literário. Uma ruptura, se não com a tradição, ao menos com a nostalgia da origem.

LIVRO
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER ***
No romance de 1984, as histórias de quatro personagens se cruzam em variações polifônicas sobre o tema nietzschiano do eterno retorno e da busca de formas libertadoras de vivência erótica e amorosa.
AUTOR: Milan Kundera
TRADUÇÃO: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca
EDITORA: Companhia das Letras (edição de bolso, 2008, 312 págs., R$ 24)

FILME
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER ***
A adaptação do romance mais famoso de Kundera tem trilha sonora calcada em Janácek, compositor ao qual o escritor dedica diferentes ensaios de "Um Encontro".
DIRETOR: Philip Kaufman
DISTRIBUIDORA: Warner (1988, R$ 19,90)

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LIVRO
A ARTE DE ROUBAR ****
D. Dimas Camándula, tradução de Fernando Carlos Moura (Unesp, 2012, 228 págs., R$ 34)
Sob o pseudônimo Camándula, o espanhol Pedro Felipe Monlau publicou no século 19 esse tratado satírico, de incrível atualidade, sobre golpes e furtos perpetrados por larápios célebres e anônimos. Lançando mão de apropriações literárias, o próprio texto é uma fraude que iguala autor e leitores em sua deliciosa burla moral.

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Mariana Chama/Divulgação
Os membros do quarteto instrumental À Deriva
Os membros do quarteto instrumental À Deriva

DISCO
MÓBILE ***
À Deriva (Tratore, R$ 25)
Em seu quarto disco, o quarteto (saxofone/flauta, piano/acordeon, baixo e bateria) explora timbres inusitados, cruzando objetos sonoros com trilhas pré-gravadas. Passagens meditativas se alternam com linhas fraturadas, introduzindo tensão criativa na mescla de jazz e de ritmos populares do instrumental brasileiro.

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FILME
COPACABANA ***
Marc Fitoussi (Europa, locação)
A praia carioca do título é apenas uma miragem nessa comédia amarga sobre uma mãe despirocada (Isabelle Huppert, sempre excepcional) que busca um emprego convencional para se reconciliar com a filha certinha. O conflito de gerações se acopla a críticas ao discurso corporativo na Europa globalizada.

Divulgação
A atriz francesa Isabelle Huppert no filme Copacabana
A atriz francesa Isabelle Huppert no filme Copacabana

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