Folha de S. Paulo


Livro de Hermann Broch é análise sobre crise da civilização

Na "Divina Comédia", Dante Alighieri fez de Virgílio seu guia pelo "Inferno" e pelo "Purgatório", criando assim um paralelismo entre a epopeia sobre a fundação da civilização europeia (a "Eneida") e o poema que associa a cosmologia cristã às línguas modernas.

Há um procedimento semelhante, porém com sinal invertido, em "A Morte de Virgílio". O vienense Hermann Broch (1886-1951) fez do poeta latino o protagonista de seu romance para estabelecer uma ponte entre a crise do Império Romano e o colapso da civilização ocidental à época da Segunda Guerra.

A tradução de Herbert Caro (também responsável por verter romances de Thomas Mann, Elias Canetti e Hermann Hesse) não é nova, mas estava fora de catálogo. A reedição, portanto, é uma oportunidade para conhecer esse "clássico moderno", no sentido exato da expressão.

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Escrito durante a Segunda Guerra,
Escrito durante a Segunda Guerra, "A Morte de Virgílio", de Hermann Broch, é análise sobre crise da civilização

O livro descreve as 18 últimas horas de vida de Públio Virgílio Marão, no ano 19 a.C., com um fluxo verbal que já foi comparado a "Ulisses", de Joyce. Consta, aliás, que foi graças à intervenção do escritor irlandês e de Stephen Hudson (tradutor inglês de Proust) que Broch pôde sair da Alemanha nazista, após ser detido pela Gestapo.

Junto com essa escrita moderna, que cancela os limites entre prosa e poesia, aparecem uma altivez moral e uma meditação crepuscular que conferem ao livro um perfil apolíneo, clássico, em que a sabedoria promete restaurar a ordem perdida.

O resultado é um suntuoso poema sinfônico com momentos de nostalgia e ímpeto, fúria e caridade. O capítulo de abertura, com a chegada do poeta doente ao porto de Brundísio, a bordo da esquadra do imperador Octaviano Augusto, corresponde a algumas das mais belas páginas de toda a literatura.

E no epílogo, composto de frases caudalosas e raciocínios em espiral, Broch faz com que corpo e alma de Virgílio se dissipem no éter, num retorno panteísta à natureza que é também uma celebração das propriedades imateriais do verbo, da poesia como último refúgio para as calamidades e vulgaridades do século.

LIVRO
A MORTE DE VIRGÍLIO
Escrito durante a Segunda Guerra, obra analisa crise da civilização
AUTOR: Hermann Broch
TRADUÇÃO: Herbert Caro
EDITORA: Benvirá (512 págs., R$ 49,90)

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LIVRO
ENEIDA ****
A bem cuidada edição do clássico traz ensaios e mapas que contextualizam as peregrinações de Eneias, o herói de Virgílio, de Troia até a Itália.
AUTOR: Virgílio
TRADUÇÃO: Odorico Mendes
EDITORA: Ateliê Editorial/ ed. da Unicamp (2005, 320 págs., R$ 86)

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LIVRO
ÁLCOOIS ****
Guillaume Apollinaire, tradução de Mário Laranjeira (Hedra, 348 págs., R$ 47)
Edição bilíngue do livro que reúne, em versos livres e convulsivos, a poética que sintetiza o espírito das vanguardas do século 20. Precursor do surrealismo e do poema gráfico, Apollinaire (1880-1918) multiplica pontos de vista, que compõem uma imagética cubista, como no poema "Zona", considerado o mais importante da modernidade.

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MÚSICA **
A IDADE DOS METAIS
Os Sertões (independente); para ouvir, gratuitamente
Fundado por ex-integrante do Cordel do Fogo Encantado, o grupo pernambucano não tem a mesma toada apocalíptica (apesar do nome, que remete a Antonio Conselheiro). Traz referências sertanejas, mas predomina uma dicção urbana realçada pelos sons de trombone, tuba e trompete.

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FILME
CORAÇÕES SUJOS ***
Vicente Amorim (Paris, locação)
Baseado no livro-reportagem de Fernando Morais, reconstitui a incrível história da comunidade japonesa do interior de São Paulo que punia com a morte quem ousasse dizer que o Japão fora derrotado na Segunda Guerra. Com atores nipônicos e brasileiros, dramático sem ser sentimental, dá a dimensão do fanatismo, sem deixar de ver nele uma resposta à intolerância racial contra os imigrantes.

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O ator Eduardo Moscovis em
O ator Eduardo Moscovis em "Corações Sujos"

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