Folha de S. Paulo


Sonata que teria inspirado Proust ganha nova interpretação

Algumas sonatas para violino e piano se tornaram célebres não apenas por seu valor musical, mas por estarem associadas a obras literárias notáveis, em que a música desencadeia sentimentos de tortura amorosa.

A prodigiosa "Sonata a Kreutzer", de Beethoven, também dá título à novela em que Tolstói coloca a obra do compositor alemão como estopim de um episódio de adultério e assassinato. E a narrativa do escritor russo, por sua vez, inspiraria o quarteto de cordas "Sonata Kreutzer", do tcheco Leos Janácek, que ficara perturbado pela maneira como Tolstói identificou o enlevo estético à degradação moral.

Patricia Araujo/Folhapress
Pianista Juliana D'Agostini, que registrou obra de César Franck com ramificações literárias
Pianista Juliana D'Agostini, que registrou obra de César Franck com ramificações literárias

Nessa cadeia literário-musical, ocupa lugar um tanto singular a "Sonata para Violino em Lá Maior", de César Franck, que acaba de ganhar bela interpretação do violinista italiano Emmanuele Baldini ("spalla" da Osesp) e da pianista brasileira Juliana D'Agostini.

A obra do compositor belga é considerada fonte de inspiração para a "Sonata de Vinteuil", peça imaginária do personagem ficcional que aparece em "Um Amor de Swann", de Marcel Proust. Nesse livro, que está no primeiro volume do ciclo "Em Busca do Tempo Perdido", a composição de Vinteuil antecipa a paixão do protagonista Charles Swann pela mundana Odette de Crécy, para depois embalar seu obsessivo ciúme.

Especula-se que Proust poderia ter se inspirado em sonatas de Saint-Saëns, Ravel ou Franck, pois todos correspondiam ao perfil inovador do fictício Vinteuil. Possivelmente se inspirou nos três, ou em nenhum deles --mas em geral o coração e o ouvido dos pesquisadores pende para o belga.

Não cabe especulação, todavia, em relação ao lirismo tenso da sonata de Franck, que combina langor com estridências dilacerantes. Como tampouco cabe dúvida sobre a versão de Baldini e D'Agostini, à altura de tantos intérpretes ilustres da peça, à qual dão maior fluidez entre as frases do violino e do piano.

O disco inclui ainda uma sonata de Nino Rota (compositor dos filmes de Fellini) e a "Sonata-Fantasia nº 1 - Desesperança", de Villa-Lobos --escolha que remete à nacionalidade dos dois solistas.

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CONEXÕES

DISCOS

JULIANA D'AGOSTINI + EMMANUELE BALDINI ****
ARTISTAS: Juliana D'Agostini
e Emmanuele Baldini
GRAVADORA: Lua Music (R$ 29,90)

FRANCK, RAVEL, SAINT-SAËNS: SONATAS FOR VIOLIN & PIANO ****
Reúne as três sonatas que poderiam ter inspirado a peça de Vinteuil descrita por Proust
em "Um Amor de Swann".
ARTISTA: Sarah Chang (violino) e Lars Vogt (piano)
GRAVADORA: EMI Classics (preço médio: R$ 59, importado)

LIVRO
NO CAMINHO DE SWANN ****
O primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido" inclui "Um Amor de Swann", em que o tema do sofrimento amoroso tem como trilha sonora a sonata de Vinteuil.
AUTOR: Marcel Proust
TRADUÇÃO: Mario Quintana
EDITORA: Globo (2006, 560 págs., R$ 37)

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LIVROS

O DISCURSO DO AMOR RASGADO ***
William Shakespeare, tradução de Geraldo Carneiro (Nova Fronteira, 136 págs., R$ 39,90)

A antologia mescla cenas de peças como "Romeu e Julieta" a sonetos de Shakespeare, na excelente tradução do poeta Geraldo Carneiro. Em capa dura, traz posfácio em que Nelson Ascher mostra como o bardo inglês moldou a sensibilidade moderna ao cantar o deslumbramento passional, a dor de cotovelo e a sanha destrutiva do ciúme.

PLATÃO ***
Org. de Richard Kraut, tradução de Saulo Krieger (Ideias & Letras, 656 págs., R$ 102)

O pensador grego é o virtual fundador da filosofia ocidental, no século 4º a.C., mas a estrutura de sua obra, na forma de diálogos, desnorteia o leitor. Essa reunião de ensaios de especialistas faz parte de uma prestigiosa coleção da Cambridge University Press que fornece guias eruditos e claros para as linhas dos grandes filósofos.

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FILME

DIVÓRCIO À ITALIANA ***
Pietro Germi (Versátil Home Vídeo, R$ 39,90)

Ambientada na Sicília, essa comédia de costumes tem como pano de fundo a época em que o divórcio era proibido e o "crime de honra", permitido. Para poder se entregar a uma cobiçada beldade, o personagem de Marcello Mastroianni estimula o adultério da mulher visando matá-la. Deliciosa sátira da licenciosidade italiana, sempre às voltas com o moralismo de fachada.


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