Folha de S. Paulo


Realidade diminuída

A ideia de "Realidade Aumentada", sobreposição de uma camada de dados na imagem que se vê, é cada vez mais popular. A melhoria da qualidade da conexão de dados e das câmaras de smartphones permite a diversos aplicativos que amplifiquem a percepção de seus usuários, agregando informações úteis à paisagem corriqueira.

A tecnologia é usada, de forma experimental, em guias, jogos e aplicativos sociais. Ela ainda precisa de um aplicativo "matador" que a justifique. Mas há poucas dúvidas de que ele surgirá, tornando a distinção entre o mundo que insistimos em chamar de "real" e sua projeção virtual ainda mais difusa.

Essa divisão, aliás, parte de um princípio equivocado. Muitos acreditam que a interferência no mundo digital é unidirecional. Essa visão ignora a relação de influência mútua entre o ambiente artificial e a sociedade que lhe dá origem. A interação com o mundo gerado por computadores não surge do nada. Sua prática altera a realidade social ao mesmo tempo que a reproduz e reforça.

É importante lembrar que o que pode ser aumentado também pode ser diminuído. Experimentos como o desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Ilmenau mostram que já é possível editar um vídeo automaticamente, removendo pessoas e objetos em tempo real. O que seria o sonho de qualquer censor soviético está cada vez mais próximo de se tornar realidade.

O processo é razoavelmente simples. A imagem tem sua resolução diminuída, a área indesejada é apagada e suas redondezas são copiadas e borradas, tomando o seu lugar. O resultado final é posteriormente restaurado para a resolução original. Tudo sem intervenção humana. Ele é um passo adiante do protótipo para remover pessoas do Google Street View por realizar o processo de "limpeza" em vídeos, à velocidade espantosa de cerca de 40 microssegundos por imagem, o que permite sua aplicação em streaming em tempo real.

A realidade aumentada, que hoje é mostrada através das telas pesadas, lerdas e incômodas dos smartphones, logo estará embutida em para-brisas, janelas, óculos e outras superfícies translúcidas. Tudo que for capaz de exibir vídeo poderá editá-lo em tempo real, removendo ou agregando imagens à dura realidade. Pichações, vandalismos, sujeira e moradores de rua poderão ser eliminados com o equivalente a um clique. Não é difícil imaginar um serviço que promova essa "limpeza" de forma automática, baseada nas preferências estéticas de seus usuários.

É um poder gigantesco. Sua capacidade de persuasão é inimaginável. A combinação de processos de realidade aumentada de altíssima definição com a remoção de partes indesejáveis do mundo real poderá criar uma visão completamente modificada do mundo. Na impossibilidade de sanear e limpar o planeta, não faltarão Marias Antonietas dispostas a maquiá-lo.

Esse cenário já foi imaginado pela ficção científica. No filme distópico de terror cult-alienígena "Eles Vivem" de 1988, o herói descobre um óculos especial através do qual pode ver o mundo real escondido por trás de belas paisagens e mensagens publicitárias. Neste mundo, extraterrestres usam mensagens de motivação para manter os seres humanos motivados enquanto os escravizam. Os óculos imaginados aqui realizariam o processo contrário, mas a ideia base é a mesma.

A visão edulcorada de uma realidade mediada pode fazer com que a Internet consiga levar a cabo uma proposta alienante muito além do que imaginou a TV. Sob certos aspectos ela já existe, basta examinar qualquer linha do tempo do Facebook para se ter uma ideia do enorme poder de influência de uma visão de mundo restrita ou direcionada.

Em uma sociedade progressivamente mediada por processos digitais, o mapa se transforma no território. Seu conteúdo e parâmetros tomam a forma de novos códigos de conduta e instruções. É possível imaginar, nos piores cenários, que determinados locais ou vistas sejam eliminados da visão comum, tornados acessíveis apenas para os felizardos capazes de pagar pela mensalidade que garanta o privilégio de vê-lo. Pode-se, como hoje é feito com sementes transgênicas, assinar um serviço de visualização que transforme o mundo em uma versão personalizada do Netflix, em que a simples visão é transformada em um serviço.

A série inglesa Black Mirror usou essa edição da realidade como uma forma de punição judicial. É um cenário otimista em um ambiente de versões particulares da realidade e privatização dos espaços públicos.

A ordem simbólica expressa por meios digitais não emerge do nada. Ela é uma mera reprodução (ou extensão) do que sempre existiu. Uma sociedade não pode ser resumida ou representada em sua complexidade por facetas de sua cultura, mas à medida que representações aumentadas de seus desejos são aplicados no mundo real, corpos e objetos se tornam telas para a circulação de ideias, sinais e símbolos. É, sem dúvida, uma grande aplicação prática do que filósofos chamam de (pós-) modernidade líquida.


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