Folha de S. Paulo


Sofremos de dependência por velocidade

A correria tecnológica faz com que o tempo se torne uma das grandezas mais valorizadas no mundo contemporâneo. Há uma percepção geral de que a vida flui rápido demais, de que há pouco tempo disponível, de que a quantidade de compromissos e demandas escapa do controle e de que há coisas demais feitas em regime de urgência.

Nessa compulsão acelerada, e-mails são enviados para confirmar se outros e-mails foram recebidos, mensagens de texto não respondidas em menos de 5 minutos recebem novas mensagens de confirmação. No trânsito, muda-se de faixa desesperadamente em um congestionamento, culpa-se o Waze por eventuais lentidões e corre-se furiosamente nas estradas a caminho da praia para que se possa "descansar" ainda mais rápido.

Há pouco tempo diziam que a sociedade pós-industrial traria uma "revolução do lazer", promovida pela automação das casas e indústrias. O progresso econômico levaria a maior prosperidade e libertaria todos para que cuidassem da família, dos estudos, e realizassem atividades gratificantes.

Não foi bem isso o que aconteceu. A inovação parece ter acelerado a vida cotidiana e submetido as pessoas a suas demandas. Os mesmos aparelhos digitais que deveriam aumentar a eficiência se tornaram motivos de estresse. O mundo parece cada vez mais rápido, complexo e fugidio para que seja compreendido adequadamente.

Mas a realidade é que ele sempre foi assim. O que não havia eram tecnologias para trazê-lo instantaneamente, em toda a sua magnitude, para cada bolso e colo.

O resultado é que hoje vive-se em uma espécie de constante distração. Forças na periferia da atenção são amplificadas, enquanto aquelas que estão imediatamente à frente são ignoradas.

Qualquer habilidade para planejar (ou até mesmo para seguir um plano) é bombardeada pela necessidade de improvisar caminhos meio a uma quantidade crescente de novos impactos externos. Boa parte das decisões é tomada de forma impulsiva, sem qualquer oportunidade para considerações.

O ridículo da situação foi satirizado por Woody Allen em "Todos Dizem Eu Te Amo", cujo personagem, em uma crise neurótica, diz: "Vou me matar. Vou a Paris pular da Torre Eiffel. Se eu pegar o Concorde, posso estar morto três horas mais cedo, o que seria perfeito. Com o fuso horário, posso estar vivo por seis horas em Nova York e, ao mesmo tempo, morto em Paris. Posso fazer uma porção de coisas e, ao mesmo tempo, estar morto."

Desde os movimentos modernistas que se preza a velocidade. Interpretações artísticas da sociedade industrial, eles encorajaram a revisão dos valores sociais em busca de novas ideias que acomodassem o progresso dos tempos. Dentre eles, o Futurismo do começo do século 20 foi o mais enfático: ele idolatrava os "novos" temas ligados à indústria: velocidade, juventude, tecnologia e os grandes centros urbanos representavam para seus adeptos o triunfo da humanidade sobre a ditadura da natureza, que durante tanto tempo ditou o ritmo da vida.

O que eles não imaginavam era que no mundo no "tempo real" da máquina, que todos estão ligados o tempo todo, não haveria tempo para descansar ou refletir. A partir do instante em que o chefe não estava mais no escritório, mas no colo ou no bolso, disponível instantaneamente o dia todo, as tarefas e sua cobrança passaram a ser internalizadas e, no processo, se tornaram ainda mais rigorosas do que o eram no mundo antigo.

Hoje não parece haver um instante livre. Tudo precisa ser preenchido com alguma função. A própria ideia de tempo mudou de natureza. Ele não é mais linear, mas amorfo e associativo. O passado é achatado e o futuro, irregular. Ambos estão dispersos em grandes volumes de informação e interpretações variadas. Como um gigantesco inconsciente terceirizado, fatos e acontecimentos são registrados e classificados minuciosamente, embora sua compreensão nem sempre esteja disponível.

As pessoas, (ainda) analógicas, vivem em uma espécie de estresse traumático nesse contexto de excesso de informação e demandas. Ele se manifesta em uma forma de desilusão generalizada e falta de direção. Ninguém parece saber para onde vai, por mais que tenha certeza de que chegará lá cada vez mais rápido.

Essa frustração gera uma natural resistência, que se manifesta em ideais e movimentos românticos que propõem uma estética da desaceleração. Tudo é tão bonito quanto efêmero, e seus efeitos colaterais podem ser ainda piores. Não adianta promover "desintoxicações" digitais ou se manter desplugado nos finais de semana se no resto do tempo as tarefas continuarem a se acumular.

Os aparelhos tecnológicos são muitas vezes tidos como fatores externos, alheios às relações sociais. Mas na realidade boa parte das instituições é construída por meio deles, que acabam por incorporar códigos e práticas coletivas em um processo contínuo, interativo e progressivo a espelhar as fronteiras da imaginação.

Fundamentais para a forma com que a sociedade contemporânea se relaciona com o tempo, espaço, comunicações, entretenimento, socialização, identidade e consciência, tecnologias tanto definem a cultura de velocidade quanto a refletem.

Em vez de se pressionar endemicamente por tempo e, no processo, se confundir com o que é efetivamente feito, é preciso reexaminar a dependência de velocidade e aceleração e sua relação com produtividade, eficiência e, em última instância, com o progresso.

Novas ideias são hoje mais importantes do que novas tecnologias. A infraestrutura digital precisa ser explorada para dar a seus agentes humanos e não humanos maior harmonia e equilíbrio. É preciso abandonar a velha ideia de que a velocidade é, por si só, um valor. Só assim se poderá ter uma visão mais abrangente de um cenário tão complexo.


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