Folha de S. Paulo


Burro demais para a tecnologia?

Uma lava-louças que tenha botões demais a ponto de comprometer sua operação será considerada um produto ruim. É raro o usuário que acredite ser "burro demais" para operá-la. O mesmo pode ser dito de boa parte dos eletrodomésticos, cujo excesso de controles raramente intimida seus operadores.

Em 2016, muito se falará dos novos carros autônomos. Grandes mudanças são esperadas, mas é de senso comum que eles continuem a se parecer com automóveis. O volante pode até ser substituído por um manche de avião, mas não poderá deixar de existir. E se for trocado por algo tão estranho quanto um guidão de bicicleta, precisará de um bom motivo para não ser descartado.

Esse bom senso raramente ocorre quando se fala em aplicativos e sistemas operacionais de computadores e dispositivos móveis. Pelo contrário, estes lançam mão de terminologia complexa e atualizações compulsórias para tornar seus aparelhos arcaicos e obsoletos.

Da mesma forma que a moda e a indústria cosmética, a tecnologia de consumo vem cedendo às artimanhas do marketing e deixando de ser uma ferramenta para se tornar um artigo de luxo e estilo. Ela impulsiona o consumidor jovem, inseguro e com dificuldade de controlar seus impulsos por comprar dispositivos caros e sofisticados como forma de manifestação de sua identidade, descartando-os em nome do próximo modelo. Os outros que corram atrás.

Não há nada de errado em se buscar uma máquina mais nova, contanto que as antigas continuem a ser operacionais, como carros, liquidificadores ou televisores antigos. Mas se uma televisão com dez anos de idade ou um CD player com duas décadas de vida podem funcionar perfeitamente, o aparelho digital capaz de tocar vídeos e músicas dificilmente será capaz de realizar suas funções adequadamente depois de cinco anos de sua compra.

Essa pressão expõe o consumidor de tecnologia a situações humilhantes e constrangedoras, de forma prolongada e repetitiva, atentando contra sua dignidade e integridade psíquica. É uma forma de assédio moral.

Como acontece com boa parte dos casos de assédio, a tendência é relativizar o problema e culpar a vítima. Assim, sob a desculpa de aumentar a segurança, bancos e empresas de serviços de computação em nuvem tomam atitudes arbitrárias ao cancelar contas e forçar a troca de senhas, transferindo a responsabilidade do sigilo para o pobre usuário.

Da mesma forma que o habitante de uma cidade cujo serviço de segurança pública seja precário é criticado por não ter uma porta reforçada, alarme no carro ou carteira escondida, o usuário de tecnologia é compelido a submeter-se a constantes "atualizações" de sistema. Essas atualizações, compulsórias, tornam seu aparelho que até então funcionava perfeitamente uma geringonça lerda e inútil, incapaz de operar os mesmos aplicativos que funcionavam perfeitamente até então.

Quem resista a essa imposição mercadológica –por ideologia ou simplesmente não ver motivo para trocar mais uma vez de telefone– é discriminado e estereotipado por estratégias perniciosas de marketing, que lançam mão de todas as ferramentas de discriminação, do humor à restrição de acesso, até fazer com que à máquina não sobre utilidade possível que não seja a do lixo eletrônico.

Em uma época que se contesta todo tipo de discriminação, o preconceito com relação à velhice dos computadores e de usuários que não conseguem ver valor na última rede social ou traquitana eletrônica é constante. Essa discriminação psicológica, que tende a classificar as pessoas pelo equipamento que usam, soaria estranhíssima em usuários de automóveis ou geladeiras. No mundo digital ela é tão frequente que parece normal.

Ao contrário de outras formas mais evidentes e comuns de preconceito, essa restrição tende a ser resistente à mudança e, com o tempo, transforma-se em profecia autorrealizável. Suas vítimas, de tanto serem consideradas incapazes, menores e incompetentes, acabam por aceitar a humilhação e pedir desculpas pelas baixas expectativas que seu humilde aparelho terá.

Da mesma forma que uma vítima de assédio moral em seu emprego, a vítima desse preconceito tecnológico sofre uma degradação deliberada de suas condições de trabalho. Aos poucos o usuário da máquina velha é isolado, hostilizado, ridicularizado, inferiorizado e desacreditado perante seus pares, até que perca de vez a autoconfiança e se renda à nova máquina, tão brilhante quanto descartável.

Traiçoeiro e de difícil identificação, o assédio tecnológico é tão presente quanto difícil de provar. Mas seus efeitos são evidentes. É cada vez mais comum ver nos párias digitais a sensação de serem simplórios, velhos, anacrônicos, burros, ultrapassados, incompetentes ou impotentes. Envergonhados por não condizerem às expectativas tecnológicas da sociedade, muitos acabam por sentir uma enorme vergonha de si próprios.

Em sua humilhação, mal podem compartilhar a ignorância de seus pensamentos impuros sem assumir a culpa pela incapacidade de acompanhar a moralidade aceita. Presos a uma coleira psicológica, muitos passam a vida a correr sobre trilhos estabelecidos pelas estratégias das marcas, definindo sua identidade a cada novo aparelho adquirido.

É preciso assumir uma postura mais ativa contra os abusos do marketing tecnológico. Não há do que se orgulhar em não saber usar uma tecnologia. Se não ter um carro pode ser visto como uma manifestação de desapego ou liberdade, não saber guiar é uma limitação.

Não há nada de esotérico, místico ou complexo nos aparelhos e nas estratégias de dominação global de seus fabricantes. Esse tipo de comportamento é comum em qualquer ambiente de rapina explorado por ambientes pouco regulados, em que a publicidade explora a insegurança e o desconhecimento da novidade para desrespeitar as conquistas que uma sociedade democrática tanto lutou para garantir a seus membros.


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