Folha de S. Paulo


Problemas vs. mistérios

O linguista Noam Chomsky uma vez sugeriu que a ignorância, ou o desconhecimento que se tem a respeito de um tema qualquer, poderia ser dividida entre duas categorias: problemas, ou fatos que estejam dentro da capacidade de raciocínio; e mistérios, que se localizem além dela.

Segundo ele, os problemas abrangem as questões que podem ser compreendidas e respondidas, mesmo que não sejam diretamente solucionadas. Restritos pela formação individual, seu tamanho estaria relacionado à capacidade ou ao alcance cognitivo de cada um, derivado de suas aptidões e interesses. Um problema pode ser grande ou pequeno, simples ou complexo, interessante ou monótono. Sua solução pode estar parcialmente ou completamente certa ou errada, não importa. Basta que seja passível de identificação, representação e transmissão.

Mistérios, por sua vez, têm uma característica particular. Eles são, por definição, insolúveis, inexplicáveis, incompreensíveis. Sob esse aspecto, causam impacto maior do que os problemas por serem inacessíveis, tão grandiosos que desafiam a capacidade de quem os enfrenta de conhecer a sua verdadeira natureza. Como as respostas estão além da compreensão, só é possível acatá-las.

Quando um problema é enfrentado, pode-se não conhecer a sua solução nem saber se ela será definitiva ou causará problemas ainda maiores. Mesmo assim há uma ideia razoável do que se pode esperar como resposta. Já quando o que surge pela frente é um mistério, a única opção que se apresenta é a da contemplação. Como não há ideia do que o tenha causado nem a menor compreensão de sua estrutura, não se pode imaginá-lo de forma diferente. Seu controle ou transformação estão além da capacidade de quem o vivencia.

Boa parte das religiões, crendices e mitologias surgiram para explicar os mistérios do dia a dia e, no processo, apaziguar ânimos e estabilizar revoltas contra desigualdades sociais. Praticamente todo povo primitivo tem suas razões, banais ou elaboradas, para fenômenos que desafiam a compreensão de seus membros, como a noite, a chuva, o abandono, a morte, a desigualdade de gênero, a repressão e as diversas injustiças a que a carne é exposta.

A infância também é repleta de mistérios. No processo de crescimento intelectual alguns conseguem problematizá-los e, dessa forma, ampliar sua visão de mundo. Não é confortável, mas é libertador. A inteligência, ou capacidade de resolver problemas, é uma via de mão única, muitas vezes tortuosa e dolorida, para a qual não há volta. Não há pessoa esclarecida que, em um momento de agonia e desespero, não tenha desejado ser burra para sofrer menos. O contrário raramente ocorre.

Os ganhos da inteligência não são palpáveis e nem sempre correspondem a melhor qualidade de vida. Isso faz com que muita gente se torne pragmática, abandonando o debate e abraçando "verdades" sociais de forma inquestionável. O que é um fato que demandaria exame se transforma em preconceito, estreitando a visão. Arrogantes com sua versão particular do conhecimento, muitos criam novos mitos para os acontecimentos de que não têm vontade, paciência ou energia para pesquisar a razão ou o mecanismo. E nesse processo envelhecem e endurecem, resistindo de todas as formas ao que desafie seu modo de ver.

Mistérios, de tão abundantes, são considerados forças naturais. Não se sabe como o outro pensa, o que o levou a chegar a tais conclusões, o que poderia fazê-lo mudar de ideia. Suas vias misteriosas, como aquelas que muitos consideram divinas, não são questionáveis. Quando não é possível compreendê-las, não há negociação nem forma de mudá-las. E assim se transita pelo mundo sem esforço nem descoberta, resignado a coletar o que é oferecido.

Problemas, por sua vez, incomodam. Problematizar é chato, problemáticos não querem saber de "solucionáticas". É tão mais fácil reclamar do que protestar, resmungar do que criticar, se resignar do que debater que, por uma mistura de economia de energia e cansaço generalizado, muitas boas intenções não deixam o caderno de rascunhos. Se é que chegam a ser escritas em algum lugar.

Produtos de entretenimento como Netflix ou redes de compra como Amazon fortalecem esse comportamento bovino. Ao estimular as "preferências" de seus usuários, não raro reforçam um ponto de vista consolidado, para o qual não parece possível haver visões alternativas. E assim cercam seus usuários de narrativas que consolidam sua visão cômoda e imutável.

Da mesma forma, jogos como Facebook e Twitter, travestidos de redes de integração social, isolam seus usuários do mundo real à sua volta, reforçando sua opinião e a visão daqueles que, como os líderes espirituais, são "seguidos". De uma forma dogmática e restrita, não há questionamento nem oposição. Quando não há concordância possível a única solução que se apresenta é o corte da relação.

Boa parte do desconforto social que se vive atualmente vem dessa visão misteriosa, fechada e dogmática do mundo, para a qual não parece haver saída. Muitos querem abandonar tudo: escola, empregos, cidade, casamento e identidade, sem saber ao certo para onde ir. Não parece haver disposição ou paciência para escutar, ceder, compreender, transformar ou reformar a riqueza que se possui. No mundo de maravilhas e opções brilhantes mostrado pelas redes, a terra de oportunidades está a um clique de distância. Para ela o legado construído não passa de um fardo, lastro que impede cada um de alçar grandes voos.

Problemas, por mais desconfortáveis que sejam, costumam trazer uma grande satisfação à medida que são enfrentados, conquistados, ultrapassados. Como aquela montanha que parece intransponível até ser transposta, são espelhos da grandeza de visão dos que se dedicam a enfrentá-los.


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