Folha de S. Paulo


Livros demandam respeito

Foi o "Número Zero", do Umberto Eco, mas poderia ter sido qualquer outro. A edição, descuidada, dava claros indícios de ter sido feita às pressas. A capa, com tipografia de bestseller e composição primária, ela tinha uma cara pasteurizada de banco de imagem. Mas o pior estava dentro. Apesar do colofão (aquele texto que, por tradição, aparece na última página dizendo qual é o papel e a tipografia usados no livro) dizer que a história havia sido composta na família tipográfica ITC Souvenir Std, o primeiro capítulo e os dois últimos estavam escritos em outra tipografia, que se não me engano era Helvetica (ou seria Arial?). A transição era perturbadora. E nada nele deixava claro que aquela deveria ser a intenção do autor ou do designer. A não ser que a delicadeza semiótica de um autor de tamanha envergadura me escapasse à compreensão. Considerando que Umberto Eco é responsável por títulos como "A Estrutura Ausente", que nunca consegui vencer, tudo seria possível.

Da mesma forma que nem todo livro em papel é perfeito, quem reclama da qualidade da leitura em um livro digital precisa se atualizar. Maquininhas com nome de pokémon como Kindle, Kobo e Lev estão cada vez mais portáteis e parrudas. Sua tela, sem brilho e com excelente resolução, propicia uma experiência cada vez mais próxima da impressa. Provavelmente eles nunca provocarão o impacto sensorial de um livro de capa de couro e folhas grossas de papel fosco, mas não é para isso que existem. Sua maior vantagem, como a dos livros de bolso que os precederam, é a portabilidade.

Estes, quando foram inventados, também sofreram críticas. No século 16, o genial tipógrafo veneziano Aldo Manuzio, que tem em seu currículo invenções como o estilo Itálico, propôs a ideia de um livro de bolso para facilitar o transporte do conhecimento. Sua ideia era simples: ao reduzir o tamanho do objeto, ele seria capaz de reduzir seu preço e permitir que grandes quantidades fossem transportadas.

O livro de Manuzio era genial em teoria. Mas na prática enfrentou problemas de produção e acabamento. Tanto as prensas quanto a tinta da época não eram capazes de reproduzir letras e encadernações pequenas com uma qualidade próxima dos livros conhecidos. Debaixo de críticas, a ideia foi abandonada. Por séculos.

As primeiras máquinas dedicadas à leitura de eBooks, criadas por empresas japonesas como Sony e NEC, tinham uma resolução que dava saudades das velhas impressoras matriciais. Para piorar, os primeiros livros a se aproveitar da nova plataforma foram digitalizados às pressas, por gente que parecia não entender muito de computação nem de diagramação. O resultado foram cópias mal-escaneadas ou textos interpretados por computadores, cheios de erros de digitalização e interpretação, provocando uma experiência de leitura inferior à de xerox de centro acadêmico. A combinação de hardware primitivo com software (sim, um livro digital, como um website, é software) falho foi responsável pela má impressão que se criou dos primeiros livros digitais.

A história mudou quando as editoras passaram a investir na diagramação de livros em EPUB3 e outras variações de HTML, permitindo que os leitores tivessem uma experiência de leitura consistente e serena. O Kindle Paperwhite, da Amazon, foi o primeiro a ter uma resolução de leitura e cor de tela boas o suficiente para que passassem despercebidas. Logo o Kobo Glo seguiu a tendência. Apesar da experiência ainda estar a uma enorme distância da cor, textura, cheiro e som de um papel creme (que as gráficas passaram a chamar de pólen e hoje o classificam como "off-white", seja lá o que isso signifique), o branco das maquininhas era quase branco de verdade, bom o suficiente para a leitura de um livro inteiro.

O que muitos fabricantes de livros eletrônicos parece não ter entendido é que um livro é muito mais do que um simples veículo de leitura. Objetos culturais estabelecidos e consagrados, eles são ícones culturais muito mais respeitados do que uma página de jornal ou revista, ou mesmo do que uma fotografia em papel ou filme. Ao contrário de um documento digital cuja leitura não foi terminada, o objeto livro convida e provoca seus leitores, desafiando-os a lê-los. Suas páginas podem ser folheadas, marcadas ou rabiscadas. Ao serem consumidas, sua transformação física marca uma relação objetiva com seu leitor. Intocado, um livro novo é frágil. À medida que ele é devorado, suas páginas acolhem e envolvem o leitor. Textos que levem a pensar são marcados e questionados, e quando se empresta um livro seus questionamentos também são emprestados.

Mais do que um repositório, o livro é objeto, conceito e ferramenta humana. Ao fazer uma defesa da leitura, da cultura e da civilização, o livro demanda respeito. O nome Kindle, curiosamente, quer dizer "acender" ou "tocar fogo". Para o aparelho da Amazon, o uso deve ter sido com o sentido de emocionar. Mas a aproximação de livros e fogo é, no mínimo, inadequada. Objetos de admiração e fetiche, livros sempre foram queimados em regimes opressivos por conterem ideias perigosas. Em "Farenheit 451", Ray Bradbury e depois François Truffaut falam dos horrores de um mundo em que eles eram incendiados. Por mais que não haja problemas em colocar fogo nas páginas de um jornal ou revista velhos para acender uma fogueira, ninguém razoavelmente civilizado pensa em fazer o mesmo com um livro. Mesmo que o livro já tenha sido lido e não seja grande coisa.


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