Folha de S. Paulo


A dura cabeça digital

Todos gostam de imaginar que são racionais, lógicos e objetivos. A realidade, no entanto, é muito diferente: boa parte dos valores e crenças que circulam pela mente humana é resultado de um processo lento e progressivo que consiste em pouco mais do que prestar atenção em determinadas ideias e ignorar outras, formando aos poucos uma visão de mundo.

O que se convencionou chamar de opinião é, na maioria das vezes, resultado de um processo de doutrinação que pode levar tanto ao radicalismo político quanto à fé cega em seitas e homeopatias diversas. Ao prestar atenção a informações que confirmem o que se conhece enquanto se ignora ou relativiza aquilo de que se discorda, até a situação mais absurda pode ser considerada normal.

Chamado de "viés de confirmação", esse processo cerebral é uma espécie de filtro através do qual a realidade é interpretada, de forma que se adapte às expectativas que se tem dela. É um recurso engenhoso, que não só protege o indivíduo de ter que admitir um erro, como também lhe dá a impressão de que chegou a tal conclusão a partir de um raciocínio lógico.

Autor de uma das ideias mais controversas, inovadoras e importantes da Ciência moderna, Charles Darwin recorria a um truque para escapar do viés de confirmação: sempre que se deparava com alguma observação que contradizia alguma de suas conclusões prévias, ele se forçava a escrever a nova descoberta em até 30 minutos. Caso contrário, afirmava, sua mente trabalharia para rejeitar as informações discordantes, como o corpo rejeita transplantes.

O viés de confirmação afeta todas as decisões ditas "racionais", de posições políticas a caminhos a se tomar no trânsito. Como não se pode verificar cada novo fato que surge, tende-se a confiar no que é comunicado. Mesmo quando a coleta de informações é neutra, sua interpretação pode ser enviesada ou lembrada seletivamente para reforçar as expectativas.

Não é difícil imaginar as consequências perniciosas desse tipo de ingenuidade latente. A busca, interpretação e memória tendenciosas ajudam a explicar determinadas posições, por mais radicais ou patéticas que sejam. Ela também ajuda a compreender porque tantos perseveram em suas crenças mesmo quando tudo prova o contrário, buscando as correlações mais espúrias e os factoides mais absurdos para provar crimes, curas ou conspirações inexistentes.

Enquanto organizações religiosas procuram se apoiar na fidelidade de seus rebanhos e classificar eventuais contradições em sua lógica furada como mistérios da fé, as instituições laicas responsáveis pelo progresso social desde o Iluminismo –em especial o Jornalismo e a Ciência– se desenvolveram propondo investigar a realidade de uma forma neutra, problematizável e verificável.

Cientistas que desejam provar uma hipótese devem projetar experimentos com pouco ou nenhum espaço para dúvidas ou interpretações alternativas. Chega-se à verdade procurando evidências em contrário, e mesmo essa verdade nunca é dogmática: ela está disponível para ser contestada a qualquer instante.

Da mesma forma, jornalistas responsáveis aprendem a evitar a tendência de ignorar fatos que contradigam sua hipótese inicial, e fundamentam suas histórias com informações contextuais vindas de fontes confiáveis e verificáveis.

Mas ultimamente essa tradição de confiança vem sendo atacada por uma promiscuidade crescente com a publicidade, as mídias sociais e diversas formas de espetáculo. Em busca de audiência, muitos veículos de tradição e respeito investem em "opiniões polêmicas" ou "jornalismo cômico".

Ao contrário do que acontece em regimes fechados, que uma opinião forte pode resultar em prisão ou no fechamento do veículo e a comédia é usada para fazer críticas veladas que não passariam pelo crivo da censura, em regimes democráticos tais práticas não promovem o debate, a exposição a diversas perspectivas e o aumento da tolerância. Pelo contrário, notícias cômicas ou polêmicas ridicularizam questões irrelevantes de seus opositores, eliminando qualquer possibilidade de debate com golpes baixos e sujos.

Hoje que cada um é capaz de (e obrigado a) desenvolver suas próprias referências éticas para distinguir entre usos legítimos e ilegítimos de conteúdo em seus ambientes culturais - ou seja, de fazer sua própria seleção e edição de conteúdo –a internet se transforma em uma espécie de lente cultural através do qual se constrói ou distorce a realidade. A maneira como uma busca é elaborada pode fazer uma grande diferença no tipo de resultado obtido.

Sem esforço pode-se buscar imediatamente o suporte para a ideia mais bizarra. Se a pesquisa inicial não trouxer os resultados esperados, mudam-se os argumentos de busca e o processo recomeça até que a hipótese se verifique, invertendo o método científico.

Cada busca realizada na internet reflete a personalidade de quem a realiza. Google admite que o Page Rank, seu algoritmo para produzir e classificar os resultados se baseia em parte na história de busca realizada naquele computador ou por aquele usuário. De forma similar, o EdgeRank, algoritmo do Facebook, elenca os conteúdos apresentados pelo nível de interação que se tem com seus publicadores. Em outras palavras, quanto mais forte for o vínculo social que se tem com quem escreve, mais conteúdo dessa pessoa aparecerá na linha do tempo. Como raramente se tem relações intensas com pessoas de base ideológica oposta, o resultado é a confirmação que aumenta a polarização.

Cercado de pessoas que compartilham das mesmas opiniões, é difícil pensar de forma diferente. Quando surgem os eventuais conflitos, cada um procura as pessoas que confirmam suas crenças, que por sua vez amontoam "evidências" a partir da informação filtrada por buscas tendenciosas. Dessa forma, cada lado não só se sente correto, mas justo. O debate inteligente desaparece, mas da mesma forma que acontece com sal, gordura ou açúcar, o cérebro adora.

Muito se diz que as mídias sociais aumentam o isolamento e a sensação de inferioridade de boa parte de seus usuários. Esse isolamento parece também se estender para o campo ideológico. A polarização que se vê é mais resultado de uma alienação do que de um debate construtivo.

Hoje que há conteúdo abundante e todos são fonte de informação, não há mais carência de dados. Para evitar a obesidade, é preciso desenvolver um programa de ginástica mental. Antigamente se recomendava acompanhar três veículos de imprensa com linhas editoriais bem diferentes. Hoje isso praticamente não existe.

Mas as técnicas para desenvolver a imparcialidade, presentes em qualquer manual de jornalismo ou pesquisa científica, continuam válidas: citar fontes, desenvolver uma reputação de precisão, respeitar a opinião alheia, ser o mais transparente possível e evitar polarizações a não ser que se esteja pronto para defender sua posição são algumas delas.

Nessa ditadura de certezas, é cada vez mais importante identificar e reconhecer o tamanho da própria ignorância, porque isso ajudará a prestar atenção no que se vê, de forma curiosa e criativa, em vez de desdenhar a pessoa que emite a opinião de que se discorda.


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