Folha de S. Paulo


O ataque das planilhas eletrônicas

O golpe mais forte costuma vir do inimigo que parece mais inofensivo. O dano mais perigoso vem do equipamento que aparenta ser o mais confiável. Como bem o sabem os lutadores de sumô, a aparência de fragilidade é, em si, uma enorme força.

Se houver um dia uma revolução das máquinas contra a espécie humana, ou se precisarmos de um bode expiatório eletrônico para as mazelas da humanidade, meu candidato a culpado é o Microsoft Excel. Pois quem diria que justo as planilhas, aqueles aplicativos bestas e azulados, feitos para fazer contas e tabelas, poderiam se mostrar tão perigosas?

Planilhas eletrônicas nada mais são do que um conjunto de fórmulas mutuamente dependentes. Quando se olha para os resultados finais, muitas vezes é difícil saber quais foram as regras que levaram a tais resultados, a menos que estejam explícitas. "Números", já diz uma piada comum entre quem trabalha com planilhas, "são fracos: basta um pouco de tortura que digam exatamente o que se espera deles". Até mesmo a planilha mais elegantemente trabalhada pode funcionar como um castelo de cartas, pronto para entrar em colapso com o primeiro dado ou suposição incorreta.

Um exemplo desse tipo de erro que ainda vai dar muita dor de cabeça para administrações progressivas ao redor do mundo foi cometido pelos professores de Harvard Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff. Em uma longa pesquisa medindo os resultados de investimentos governamentais dos EUA em projetos sociais, eles chegaram a uma conclusão polêmica: que a dívida do governo estaria diretamente relacionada a baixos índices de crescimento econômico.

O resultado, publicado em um relatório chamado "Growth in a Time of Debt" (crescimento em tempos de dívida), mostrava, entre tabelas e gráficos que poucos examinarão, que o investimento governamental não adiantava grande coisa, e que era melhor deixar as forças do mercado se recuperarem sozinhas da crise.

É uma conclusão estranha, ainda mais se levadas em conta os índices de investimento público em países nórdicos, quando comparados à África subsaariana, e os resultados sociais que se tem nesses países. Mas a planilha não deixava dúvidas. O problema é que estava errada.

Mas como poderia estar, se os números mostravam o resultado tão claramente? Seus autores, ofendidos com os comentários que suspeitavam da qualidade de sua pesquisa, escreveram vários editoriais defendendo-a. Até que um dia outros pesquisadores conseguiram acesso a seus dados e descobriram a poeira varrida para debaixo do tapete: a planilha apresentava erros de código, exclusões de dados e "pesos pouco convencionais" para determinadas variáveis. A revisão mostrou o que se imaginava. A planilha não só estava errada como o dado levemente negativo que sugeria era, na realidade, fortemente positivo.

Esse tipo de erro é infelizmente comum hoje em dia. Uma vez que planilhas podem realizar muitas operações essenciais, quem as utiliza tende a perder de vista o fato fundamental que os montantes calculados são imaginários.

Por serem capazes de projetar cenários financeiros de variáveis quantificáveis, planilhas estimulam tomadas de decisão repentinas, nem sempre sensatas. Estas podem, em efeito cascata, gerar grandes crises. A revista Fortune lista algumas das mais recentes.

Antigamente as planilhas eram feitas à mão. Seus cálculos eram realizados por calculadoras externas, de preferência com fitas de papel, para minimizar erros de leitura e cópia. Mesmo assim os erros aconteciam com razoável frequência. Se algum valor mudasse, todo o resto precisaria ser recalculado. Fazer planilhas era uma tarefa maçante, deixada para subalternos.

A planilha eletrônica mudou o cenário. Não só por economizar tempo em cálculos, mas pela capacidade de criar cenários, explorar hipóteses, experimentar opções. Em outras palavras, brincar com uma empresa-fantasma dentro do computador.

Antigamente se um técnico quisesse sugerir uma mudança para um cliente, precisaria de alguém para calculá-la, enviá-la para o datilógrafo, depois para o revisor, depois recalculá-la para se certificar de que não havia erros. Com as planilhas eletrônicas, a máquina faz tudo imediatamente, o que mudou a forma com que se encaram as projeções. Se por um lado isso levou a grandes economias e maior eficiência, por outro estimulou o comportamento de risco que se vê em tantas empresas.

Um ambiente de software e simulação é, por sua própria natureza, maleável, ideal para quem procura uma realidade paralela. Quando se fala nesse tipo de ambiente muitos pensam nos cenários fantásticos de videogames sofisticados ou nas paisagens imersivas de simuladores, mas as planilhas eletrônicas podem ser igualmente virtuais. E muito mais perigosas.

Mais do que uma ferramenta, a planilha também representa uma visão de mundo, que recria a realidade através dos números. Se a percepção de quem toma decisões é moldada por planilhas, é importante que todos saibam o que a ferramenta pode (e não pode) fazer, que erros esperar delas. E estejam prontos para contestá-las.


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