Folha de S. Paulo


Pequenos usuários, grandes negócios

Com um poder de compra sem precedentes e abertos a qualquer novidade, as crianças de hoje se tornaram desproporcionalmente importantes para as novas tecnologias.

Até há pouco tempo elas não passavam de um mercado específico de produtos de baixo valor. Por mais cara que fosse uma Barbie, seu custo poderia ser administrado. Era comum substituí-la por uma Polly ou Susi ou herdá-las de irmãs ou primas, e suas roupinhas poderiam ser feitas em casa. Em última hipótese, um "não" tinha um bom valor educativo.

Pais e professores eram a grande barreira para empresas chegarem a um público altamente sugestionável. Sarcásticos com relação às mentiras deslavadas da publicidade, eles tinham condições de proteger os pequenos do interesse mercadológico por trás de cada comercial.

Tudo isso mudou com a popularização da TV e das revistas infantis, que deu aos departamentos de marketing formas de driblar o controle adulto e falar diretamente com as crianças. Depois de muita luta, restrições à publicidade infantil conseguiram dar ao mercado um mínimo de civilidade.

Mas os comerciantes não deixariam barato. Ao perceberem que as crianças, por sua disposição para aprender e tempo livre de sobra, eram capazes de manejar as novas máquinas muito melhor do que seus pais, passaram a direcionar suas mensagens comerciais para esse novo canal.

Era fácil demais. O uso educacional de computadores leva muitos pais a confiar implicitamente nas telas, não se importando de ter as crianças on-line. Sem saber que a publicidade eletrônica é, muitas vezes, muito mais intrusiva e manipuladora do que a pior TV seria capaz de imaginar.

A forma mais direta de tirar o doce das crianças é apelar para jogos e comunidades aparentemente gratuitos, com elementos extras que podem ser comprados para enfeitar personagens ou atingir novos níveis. Mas existem outras formas, sorrateiras e muito mais daninhas, de invadir o cotidiano. Seus efeitos só deverão estar visíveis em uma ou duas décadas.

Todos os dias profissionais especializados comercializam grandes volumes de informações que deveriam ser particulares, combinando o rastreamento de dados com informações pessoais fornecidas pelos próprios usuários.

A vigilância é perene. Ela está nas palavras buscadas no Google, nos cliques da timeline do Facebook, na identificação de palavras-chave em e-mails, SMS, WhatsApp e Waze, nos games e uso de consoles, no reconhecimento de faces e produtos em fotos, nas "curtidas" em páginas, no uso de mapas, na localização de smartphones, entre tantos. Não tardará para estar em TVs, robôs, eletrodomésticos e carros, cada vez mais difícil de identificar.

As informações, compiladas em perfis detalhados, são repassadas para anunciantes construírem mensagens personalizadas, com base no conhecimento de interesses, comportamento e status sócio-econômico de seus usuários.

Se para adultos isso é um incômodo, representado naquele anúncio que teima em reaparecer semanas depois de um produto ter sido comprado, para crianças essa distinção não é tão clara.

É complicado quando a interface do mundo real passa a vender coisas o tempo todo. Se até adultos esclarecidos assumem que o que não estiver listado nas primeiras páginas de resultados de busca é pouco importante ou inexistente, o que dizer de quem ainda não desenvolveu o senso crítico e acha normal perguntar para a interface o que fazer amanhã?

Não é razoável esperar que os pais sejam capazes de proteger suas crianças de práticas de uma indústria tão avançada e inescrupulosa. A privacidade das crianças só pode ser garantida por uma combinação de uma divulgação clara, direta e abrangente, com consentimento periódico.

Só assim será possível equilibrar o interesse das crianças em aproveitar a riqueza de informação da rede e, ao mesmo tempo, protegê-las de práticas de marketing enganosas e injustas que se aproveitam de suas vulnerabilidades nestes novos meios de comunicação.


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