Folha de S. Paulo


A grande colisora de ideias

Os abusos recentes nas mídias sociais ofuscam um pouco a bela transformação de ideias que a Internet promove. Esta coluna foi escrita na forma de um lembrete, por alguém que viveu em um mundo que não se falava dela, e, talvez por isso, nunca se canse de admirar sua majestade.

Na era da informação quântica, em que tudo o que é desmontado reaparece em outro lugar e de forma diferente, a rede mundial é muito parecida com outra invenção que surgiu do mesmo berço: o Grande Colisor de Hádrons.

Em um túnel de 27 km de circunferência, enterrado a 175 metros abaixo da fronteira franco-suíça, o maior acelerador de partículas do mundo realiza colisões múltiplas, buscando analisar os detritos resultantes em busca de novas teorias.

Com a Internet não é diferente. Mas ali o que se chocam são ideias, e desses encontros novas ideias aparecem e se adaptam. A nova informação, como as partículas subatômicas, tem um caráter diferente das que lhe deram origem. Sua natureza é complexa, instável, imprevisível.

Ninguém imaginava, quando surgiu, que a Internet se transformaria em um reflexo do pensamento humano. Usada para armazenamento de memória, extensão cognitiva e, muitas vezes, compensação emocional, é inegável que cada vez mais gente pense e sinta com a ajuda da rede e, através dela, busque novos objetivos e desejos.

A rede das redes faz com que cada mente conectada a ela perceba que, em sua essência, também é uma rede. Ao ampliar as comunidades de pensamento, ela contesta certezas e diminui autoridades. Os crescidos sob a sua influência não duvidam que a única forma de progresso é adotar a incerteza, estar aberto para mudanças de opinião, de ponto de vista, de interesses. Não hesitam em confrontar diferentes Verdades com V maiúsculo para demoli-las, espatifá-las e buscar, nos detritos resultantes, novas verdades. Múltiplas, plurais, contraditórias, por que não?

O novo pensamento propiciado pela rede é muito mais líquido que sólido, graças a meios de comunicação igualmente fluidos. Como no Twitter, em que diferentes partículas de pensamento se agrupam até formar os tópicos mais relevantes, a textura humana da informação está manifesta nas conversas visíveis, nos picos e surtos de texto, no graffiti exposto das marcações e comentários e no fluxo de consciência em que diversos assuntos buscam consonâncias.

Na Internet é mais fácil compreender ideias que, na mecânica quântica, pareciam tão fantásticas. A todo instante são estabelecidas realidades paralelas que, como o gato absurdo de Schrödinger, estão superpostas, simultaneamente vivas e mortas. A natureza da pergunta modifica a qualidade da resposta.

Nesta sopa de conceitos, o filtro é a mensagem. Ele substitui a memória que, agora externa e compartilhada, espatifa o caráter atômico daquele que um dia foi chamado de indivíduo. No mundo colaborativo a figura individual é cada vez mais anacrônica. Todos são pontos focais em grandes redes, subconjuntos de informações, valores e interesses diversos. Se o tema do Iluminismo foi a independência, o maior valor do futuro próximo deverá ser a interdependência.

Mas para explorar adequadamente suas riquezas é preciso mais do que Facebook. Por mais abrangentes que sejam seus domínios, o gigante azul ainda representa a infância digital. Em sua imaturidade, ele procura mimar e satisfazer os desejos mais imediatos de seus usuários. Sem ele, dificilmente a rede seria tão popular. Mas no ambiente da nutrição informática, ele não significa muito mais do que uma porção de batatas fritas.

Para transcendê-lo é preciso desenvolver novas alfabetizações, fundamentais, de atenção, participação, colaboração e detecção de bobagens. Quem não as tiver certamente será vítima da superficialidade, credulidade, distração, alienação, vício e tudo o que se critica hoje na rede.

É preciso maturidade para compreender a dimensão da Internet. Só assim será possível assimilar conteúdos além da zona de conforto e cultivar uma neutralidade acima de simpatias e reservas. Um dos ambientes possíveis para essa nova forma de pensar seria um serviço tão bom em representar controvérsias quanto a Wikipédia o é para representar consensos.

Costumávamos cultivar pensamento. A rede nos transformou em caçadores-coletores de imagens e informações. Não tardará para que sejamos capazes de associar as duas técnicas e pensarmos como nunca se pensou.

Somos a primeira geração a ter o equivalente do Grande Colisor de Hádrons para ideias. Se isso não mudar a nossa maneira de pensar, nada mudará.


Endereço da página: