Folha de S. Paulo


Não votei em você

Esta coluna foi escrita na sexta-feira que antecedeu as eleições (24). Ela não diz respeito ao candidato vitorioso, mas aos comportamentos daninhos que antecederam sua vitória. Vale para os dois lados.

Fazia muito tempo que não se viam brigas entre correligionários nas ruas, nem um debate político de tamanha intensidade emocional. Por todo lado, o que se via era uma divisão, como se os valores das partes fossem mutualmente exclusivos. Ou se um, qualquer um, pudesse viver sem o outro.

Pouco se debateu sobre opções de governo. Se houvesse tal debate, não seria difícil chegar à conclusão razoavelmente óbvia de que os dois não eram, em sua essência, tão diferentes.

Nem tão poderosos. As instituições brasileiras são fortes o suficiente para impedir qualquer grande virada na condução do Estado. A composição dos orçamentos e a estrutura das leis garante que boa parte do jogo esteja previamente definido, à prova de bravatas ou loucuras diversas.

Mas é difícil explicar essa condição em um ambiente de tamanho caráter emocional. Ainda mais em um país de realismo fantástico, que até o presidente da República não ocupa seu cargo, mas "toma posse" da Presidência.

O que se viu nos últimos dias passou longe de uma festa democrática. Da mesma forma que a alegria do Futebol se perde quando torcidas partem para a selvageria, a riqueza do debate foi ofuscada pela declaração de medo, manifesto de várias formas, da oposição às forças de mercado à defesa do armamento. Travestidas de valentia e independência, elas mostram ignorância histórica. Não é corajoso se comportar como se todos ao redor, países ou pessoas, fossem ameaças. É psicótico.

O comportamento tribal de uma disputa marcada por desinformação, simplificando o mundo em campos opostos, pode facilitar a adesão, mas dificulta qualquer administração. Ideologias antagônicas e comportamentos agressivos não encontrarão pontos em comum para que se avance nas discussões. Como acontece quando se enfrenta um relacionamento pessoal com problemas, não se pode recomeçar a partir do zero, reiniciar a jornada como se fosse uma nova vida em um videogame.

E poucas vezes essas discussões foram tão necessárias. Por mais que "salvadores da Pátria" proclamem que tudo será diferente, os próximos anos não serão fáceis. Será preciso fazer ajustes fiscais, controlar a inflação, equilibrar as contas. Enfrentamos um esgotamento do modelo de crescimento econômico e não temos serviços públicos razoáveis. Sem crescimento econômico é difícil prover serviços públicos de qualidade. Sem capacitar a população é difícil gerar crescimento.

É um círculo vicioso. Para sair dele é preciso reorganizar estruturas arcaicas, viciadas, desenhadas para coagir e desarticular o indivíduo. O problema não é só da polícia, do governo, do hospital ou da escola. É de todos. Enquanto não houver um diálogo constante entre governantes e governados, não haverá transformação de fato.

A grande quantidade de votos nulos do primeiro turno, que deve ter se repetido no segundo turno, mostra uma insatisfação com um sistema que não representa seus cidadãos nem possui capacidade de dialogar com eles. Por mais que se possa escolher o dirigente, falta transparência e influência em suas decisões. O resultado é frustrante.

Passado o carnaval das eleições, como foi o das manifestações, boa parte da população, saturada pela intensidade e irracionalidade do debate, provavelmente voltará às futilidades da mídia, potencializadas via Facebook. É uma pena.

Acredito que o calor das manifestações na rede é sinal de um povo que está aprendendo a se manifestar e a ser ouvido. Toda essa emoção não deve se transformar em desprezo nem apatia, mas em vigília. E a Internet pode ser o melhor caminho para o exercício do interesse público. Mas não como é feito hoje, que bloquear e curtir é mais fácil do que debater ou sugerir.

A Primavera Árabe mostra que articulações digitais podem ser úteis para derrubar estruturas, mas que vácuos de poder serão rapidamente preenchidos pelas velhas máquinas ou por grupos altamente motivados e organizados, normalmente extremistas.

Há caminhos melhores, conciliadores, para nós. Deixamos a escravidão, que um dia foi tão parte do sistema quanto a Internet é hoje, sem grandes tumultos. Saímos de períodos de crise, hiperinflação e ditaduras em absoluta tranquilidade. Tudo mostra que sairemos desse impasse com igual facilidade.

Mas para isso é preciso participar do discurso público. Precisamos de ambientes plurais, abertos à participação, que tenham real influência sobre políticas públicas. E esse debate deve ser conduzido com respeito, criatividade e compaixão.

Como diz a sabedoria pintada nos muros das ruas, gentileza gera gentileza. Mais amor, por favor.


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