Folha de S. Paulo


Deus ex-machina

Desde o final do século 19 se tornou comum pensar em Ciência e Religião como grandezas distintas, quando não opostas. A relação, mais complexa do que muitos gostariam de admitir, não promete se resolver tão cedo.

Razão e crença caminham juntas feito tiras de DNA. Ao longo da história, a religião sempre influenciou e moldou avanços tecnológicos, inspirando novas descobertas ao mesmo tempo que restringia progressos tecnológicos. Da clonagem à eutanásia, da biotecnologia à modificação genética, o medo de brincar de Deus parece estar presente na maioria dos debates contemporâneos.

Entre a elite tecnológica, muitos acreditam que a internet começa a ganhar vida e se transformar em organismo global, gerando uma espécie de inteligência coletiva quase divina, onisciente e de vida eterna em realidade virtual. Mesmo futuristas com razoável base científica parecem se deixar seduzir por uma visão secular de Paraíso.

Parece bom demais para ser verdade, e além de tudo, meio manjado. Não é para menos. Presente em quase todas as culturas, a religião parece ser uma característica inerente ao ser humano, um resíduo evolucionário. Desde a pré-história somos programados para buscar a causa e os agentes de cada fato. Pegadas levam a presas ou a predadores, e podem salvar vidas.

Outra estratégia evolucionária que sobrevive aos tempos é o hábito de prestar atenção demasiada nos aspectos negativos do mundo, o que tende a causar um certo sofrimento e desejo de fuga. Praticamente toda visão religiosa antecipa um futuro em que a dor acabará.

Como diria Shakespeare, que sonhos virão quando nos livrarmos deste fardo mortal? Para a corrente da Singularidade, quando nossas mentes forem descarregadas para as máquinas seremos puros, teremos grandes ideias e controlaremos o universo. Nesse admirável mundo novo, todos serão felizes para sempre.

No ambiente contemporâneo, até o descrente mais aguerrido precisa se vigiar para não cair na ilusão de que as coisas existem por alguma razão moral, que nada é por acaso, ou que as pessoas recebem o que merecem. É difícil ser ateu quando o inconsciente trabalha contra.

A relação contraditória que o ocidente desenvolve com a tecnologia, em que robôs demasiadamente humanos tanto fascinam quanto geram desconforto, remete a uma longa história mítica. No folclore judaico medieval, o Golem é um ser antropomórfico, criado magicamente a partir de matéria inanimada. Sua figura, apesar de heróica, traz o medo de uma rebelião contra seu criador. Nas três grandes religiões ocidentais e suas derivações, o culto a objetos, ou idolatria, é considerado sacrilégio.

No Japão as coisas são mais saudáveis. Lá a tecnologia robótica desempenha um papel comum. Sua rebelião estaria, como um problema sanitário, mais para uma dor de cabeça do que para uma tragédia.

A busca por ambientes paradisíacos, esotéricos, tecno-gnósticos, mesmo que ilusórios, pode não ter efeitos daninhos. Mas ela é um truque. Ao disfarçar os problemas atuais, pode levar a um otimismo que encoraja a mudança ou a uma acomodação que preserva a situação.

A expressão em latim do título desta coluna, que significa "Deus vindo da máquina", se refere a um recurso teatral usado na Grécia antiga, em que problemas insolúveis eram resolvidos abruptamente pela intervenção artificial e inesperada de uma figura divina.

Em um cenário apocalíptico de crises financeiras, desigualdade, poluição, esgotamento de recursos e aquecimento global ela pode ser confortável, mas está longe de ser uma solução.


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