Folha de S. Paulo


O herói hacker

Na Chicago de um futuro não muito distante cada semáforo, dispositivo eletrônico, câmera e sistema de infra-estrutura está conectado à Internet. Tudo é controlado pelo ctOS, um sistema operacional desenvolvido para tornar a vida dos habitantes dessa "cidade inteligente" mais fácil e prática.

Mas a promessa tecnológica tem um risco: quem controlar o ctOS pode usá-lo para seus próprios propósitos. Privacidade, segurança e até mesmo as liberdades fundamentais podem ser ameaçadas pelos governantes ou por quem descubra como manipular o sistema.

Nesse cenário uma versão dopada do Tom Cruise, áspero e com um temperamento explosivo, resolve transformar a cidade em arma para combater a corrupção e o crime organizado.

Filme? Série? Jack Bauer? Não, game. No jogo "Watch Dogs", que vendeu 4 milhões de cópias na semana de seu lançamento, o jogador é um hacker, que precisa interceptar mensagens, invadir privacidades e interagir no funcionamento da cidade para conquistar seus objetivos.

É um jogo bem atual, que leva em conta a espionagem governamental dos EUA, o surgimento das cidades inteligentes e um protagonista que não larga do smartphone.

Ele não é o único, nem o mais abrangente do gênero. Para andar livremente por uma cidade recriada à perfeição, a série Grand Theft Auto é melhor. Para quem sonha ser hacker, há jogos para consoles, smartphones e tablets mais específicos. Mas Watch Dogs mostra uma tendência cada vez maior de se idolatrar o hacker e de ensinar suas práticas como forma de entretenimento.

"Hacker" é um dos termos contemporâneos mais contraditórios. Para muitos, o rótulo é pejorativo e criminoso. Outros, principalmente auto-intitulados, reclamam que significa exatamente o contrário. Na verdade é um termo genérico demais, que pode abranger do menino brincando com seu PC até o especialista em segurança de alto nível.

Para aumentar a confusão, recentemente surgiram os "hacktivistas", equivalente contemporâneo dos ativistas dos anos 70. Eles são hackers que buscam liberar informações de agências governamentais, lembrando da transparência necessária para se chegar a uma democracia efetiva.

E ainda há os "hackerspaces", ou espaços hacker, feitos para quem tem ideias e precisa de equipamentos e espaço para criar seu protótipo.

Pouco importa sua área de atuação, uma das principais características de um hacker é sua curiosidade insaciável a respeito do funcionamento de coisas e processos, associada à habilidade para aprender e construir em cima de estruturas preexistentes. Desmontar máquinas e algoritmos, entender como funcionam e buscar corrigi-las ou melhorá-las costuma ser tanto seu playground quanto sua universidade.

A tecnologia invadiu os principais aspectos da vida contemporânea, e a cultura hacker é o contraponto preciso a uma época de controle de processos e produção em massa. Misto de personagens de romances noir, caubóis, guerrilheiros, cientistas loucos e roqueiros, os novos heróis tem como superpoderes sua habilidade de programação, o que os torna coringas capazes de enganar a tecnologia e explorar brechas no sistema.

Fala-se por aí que a inteligência é sexy, e programação não é fácil. Heróis capazes de antecipar problemas costumam respeitar a inteligência de seus fãs, ao mesmo tempo que desafiam suas heroínas a mostrarem que também são dignas de um papel melhor que o de assistente.

A paixão também é sexy. Cientistas loucos como os doutores Jerkyll e Frankenstein, questionando os limites do conhecimento em seus laboratórios secretos, fascinam pela coragem. Aficionados dispostos a trabalhar por longas horas em nome de seus ideais, descuidando da aparência, incapazes de se comunicar com quem não for da sua área são românticos por definição. Se seguirem fielmente um código moral, são candidatos a ídolos. Se além de tudo forem bem-sucedidos, mas não se renderem ao sistema, são a personificação do Batman.

Soma-se a isso o amadurecimento de um público que cresceu lendo gibis e jogando videogames e o que se tem é uma espécie de geek chic, visível nos remakes de filmes dos anos 50, como "Onze homens e um segredo" e "Italian Job", agora com um hacker no grupo.

De certa forma, hackers são os fora-da-lei do século 21. Da mesma forma que os pistoleiros do Velho Oeste ou os mafiosos do século 20, seu poder é perigoso, e seu status, mítico.

Satoshi Nakamoto, Bradley Manning, Edward Snowden e Julien Assange resolveram usar seus poderes para fazer justiça com as próprias mãos em um processo controverso, individualista e ilegal, mas que tem, a princípio, um motivo nobre.

Vistos como uma espécie de vingadores contra o capitalismo e a vigilância da rede, anti-heróis estão cada vez mais populares na cultura pop. As demandas da sociedade contemporânea são tão opressivas, que há uma certa simpatia com relação ao oprimido, mesmo que ele seja evidentemente mau, como os protagonistas das séries Dexter e Breaking Bad.

Boa parte das histórias de hackers acontece em um gênero chamado Cyberpunk, de alta tecnologia e baixa qualidade de vida, em que o futuro está mais para Blade Runner e Matrix do que para Star Trek.

Surgido nos anos 80, época em que se temiam as incertezas da Guerra Fria, os poderes crescentes das corporações multinacionais, a influência da mídia e as consequências da urbanização e poluição, eles viam no infinito do ciberespaço a última fronteira inexplorada.

Trinta anos depois, o ciberespaço já não é tão livre nem inocente, e a figura do pirata desbravador se torna novamente necessária.

Mas não se pode esquecer que todo super-herói tem seus arqui-rivais, e que o efeito de cada ferramenta depende das intenções de seus usuários. Nas mãos de criminosos, técnicas de hacking são perfeitas para extorsão, humilhação pública, interrupção de processos, roubo de propriedade intelectual e espionagem.

Hacking, enfim, não é solução nem problema. É uma nova condição, que poderá trazer grandes poderes, desde que acompanhados de grandes responsabilidades.


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