Folha de S. Paulo


O Brasil não é a Califórnia

Boa parte da nossa elite cultural ou financeira (grupos quase mutuamente exclusivos) reclama do Brasil tendo como ponto de comparação países do dito primeiro mundo. "Nossa internet é uma vergonha comparada à da Coreia", "nossa TV não é uma BBC", "start-ups americanas não enfrentam cartório", dizem por aí, em uma lenga-lenga que não parece ter fim.

Se por um lado essa comparação é bom sinal, ao mostrar uma autoestima que nos coloca em pé de igualdade com países de históricos (e riquezas) bem diferentes dos nossos, por outro é prejudicial à autoestima nacional a ponto de paralisar iniciativas que poderiam transformar o cenário. É cômodo criticar o Brasil, infinitamente mais fácil acreditar que ele não tem jeito, do que tentar mudá-lo nas eleições.

Quando comparado a países similares, justamente aqueles contra os quais ninguém gosta de se medir, até que não estamos tão mal assim. Mais higiênicos do que a Índia, mais democráticos do que a Rússia, menos desiguais do que a China e melhores do que a Indonésia em praticamente todos os indicadores, o Brasil só poderá se destacar quando seu povo se der conta de seu verdadeiro tamanho, deixando de lado o complexo de vira-lata que idolatra a vida na gringa para exercer uma verdadeira cidadania.

Um bom exemplo está no álcool combustível, conquista brasileira desprezada por praticamente todo cidadão por causa dos defeitos apresentados em sua fase "beta". Até que um dia conquistou o reconhecimento internacional, mudou de nome para Flex e foi aceita incondicionalmente.

É fato que o Brasil não é a Califórnia. O Rio não é a Califórnia. São Paulo não é a Califórnia. Mas os Estados Unidos tampouco são a Califórnia. E nem mesmo a Califórnia corresponde à imagem idolatrada por tantos (e não, a Califórnia de Uruguaiana não tem absolutamente nada a ver com a Califórnia a que esta coluna se refere).

Boa parte do glamour que circunda o Vale do Silício não passa de mito. A história de um lugar mágico, terra de oportunidades, localizado no Velho Oeste, em que um cowboy solitário possa descobrir ouro sem esforço é muita Disneylândia para qualquer pessoa digna de bom senso.

Como todo ambiente de negócios, o Vale do Silício é pragmático demais para se dar ao luxo de ser uma meritocracia. Basta uma leitura diagonal de bestsellers recentes, como "A eclosão do Twitter" e "A loja de tudo" para demolir qualquer ideia que se possa ter de start-ups como ambientes justos. Ou desejáveis.

Cultuar empreendedores é ingênuo e perigoso. Como todo comerciante, donos de empresas têm contas a pagar, funcionários a sustentar e lucros devidos a investidores. Acreditar que sejam representantes de causas é uma infantilidade da razão. Não são, em sua essência, melhores do que qualquer dono de padaria ou posto de gasolina. E seu papel social é certamente muito menos importante do que o de ativistas comunitários, professores, assistentes sociais e milhões de outras formiguinhas anônimas que tocam diariamente a estrutura complexa do cotidiano.

A fórmula do sucesso é obscura, imprecisa e cheia de variáveis. Fatores como relações pessoais, riqueza, conjuntura, apoio do grupo, histórico, educação e sorte são muitas vezes tão ou mais importantes para o desenvolvimento de uma pessoa, empresa ou país do que o mérito de qualquer descoberta ou invenção. Quem acredita que os bem-sucedidos "merecem" a condição em que estão corre o risco de consolidar ou reforçar as estruturas de poder e privilégios atuais, de justificar as enormes lacunas entre ricos e pobres e, pior, de acreditar que aqueles que não se deram bem estão sendo punidos, quando o único crime que muitos cometeram foi o de ter nascido no lugar errado, na época errada.

A imagem de prosperidade do Vale do Silício muitas vezes nada mais é do que uma bela estratégia de marketing que, ao atrair pesquisadores e técnicos tão brilhantes quanto ingênuos às toneladas, se transforma em profecia autorrealizável. O sucesso do empreendedor, como o do ator de Hollywood e o do jogador de futebol, esconde o fracasso de milhões de outros não tão bem-sucedidos, que poderiam ter contribuído muito mais para a humanidade se tivessem outra opção de carreira.

Brasil tem, como todo país, uma boa dose de problemas. Não há, para nenhum deles, uma solução definitiva ou absoluta. Mas o que os protestos das ruas deixam bastante claro é que não se pode mais ignorá-los, ter vergonha deles, desejar ter nascido em outro lugar ou época ou importar qualquer tipo de solução que ignore as particularidades da conjuntura nacional.


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