Folha de S. Paulo


Futuro (im)perfeito

A tecnologia se torna invisível e, por consequência, o mundo se torna mais abstrato, enigmático e monolítico. Se por um lado as coisas são mais práticas, seguras e confortáveis, por outro elas provocam um certo temor e perdem parte de sua mística.

O descompasso entre as necessidades humanas e tecnológicas estimula uma subcultura retro-futurística, que mistura estilos ultrapassados com novas tecnologias, explorando a tensão entre o passado e o futuro, entre os efeitos empoderadores e alienantes da tecnologia.

Esse movimento é tão presente que mais parece uma característica dos novos tempos do que uma tendência. Seus efeitos barrocos podem ser vistos em áreas criativas tão diversas quanto moda, cinema, design, arquitetura, música, literatura e videogames.

Em uma espécie de realidade paralela, fantástica, a conviver com a nossa, há pessoas trajando bigodes, chapéus-coco, coletes, botas e relógios de bolso, circulando em dirigíveis ou carros a vapor com engrenagens expostas.

O tempo a que se recorre não é muito bem definido. Ao mesmo tempo que a coleção masculina da grife Prada parece saída de 1892, o design de carros como o Ford Mustang, o Chevrolet Camaro e o Fiat 500 parecem vindos da década de 1970. A interpretação nostálgico-esquizofrênica se reflete até nas cozinhas, em que cafeteiras e geladeiras ultratecnológicas fazem de tudo para parecer que não o são.

O que raios acontece com uma cultura em que um futuro que nunca houve - e que nunca haverá - se vê refletido em um passado alternativo, como se um viajante no tempo tivesse pulado o século 20?

Mais para H. G. Wells do que para Charles Dickens, mais para Júlio Verne do que para Oscar Wilde, esse retrato photoshopado do século 19 com algoritmos do século 21 tem um componente filosófico e contestador. Ao misturar ferramentas com decorações, ele busca uma reavaliação da tecnologia. Diferente da rejeição completa dos mundos fantásticos de dragões e castelos, mas sem abraçar incondicionalmente as novidades como a ficção científica, o retro-futurismo busca uma tecnologia palpável, maleável e compreensível, em escala humana, aberta a customizações e menos opaca do que as caixas pretas com que convivemos.

Com elementos de contracultura, ele procura criar alternativas a uma sociedade consumidora, de produção em massa e lixo eletrônico, tão pragmática quanto insustentável.

Alguns podem achar que esse tipo de movimento representa uma reação à tecnologia, mas é exatamente o contrário. Ao refletir épocas em que os produtos industriais eram embrionários, ele considera qualquer objeto uma obra inacabada, aberta a transformações.

Como não há estruturas predefinidas nem ideais de consumo, o movimento é colaborativo, aberto a todas as idades, lúdico, democrático e gentil, valores quase esquecidos na sociedade extremamente competitiva em que vivemos hoje.

No retro-futurismo a forma segue a emoção, em uma mistura que beira o imaginário. Ele mostra uma visão de futuro criativo, sem limitações. Mesmo que se torne datado ou até mesmo ingênuo com o tempo, serve para lembrar que as cartas de amor, se há amor, precisam ser um pouco ridículas.


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