Folha de S. Paulo


Feudalismo Digital

Hoje que a influência da rede se estende a praticamente todos os domínios da vida contemporânea, a concentração de poder é preocupante.

Vivemos em uma espécie de Feudalismo Digital, em que cada usuário jura fidelidade ao Senhor de seu patrimônio tecnológico. Em companhias do porte de Microsoft, Facebook e Sony, o controle sobre dados e equipamentos nunca foi tão grande nem tão intenso. Auxiliado por tecnologias da Nuvem, essas empresas podem fazer como a Amazon, que removeu conteúdo de vários Kindles, ou como a Apple, que tirou o serviço de mapas do Google do iPhone, sem satisfações nem pedidos de desculpas.

Ao contrário do que acontecia em tempos medievais, em que a servidão era uma das poucas formas de sobrevivência possível contra a peste, a guerra ou a fome, a dependência atual é voluntária. Declara-se fidelidade a um gigante digital através da compra de um equipamento ou da aprovação dos termos de serviço em um contrato de associação.

Um clique depois e os dados já não pertencem mais a quem os produziu. Onipotentes, oniscientes e onipresentes, as plataformas controlam os metadados e, através das previsões calculadas a partir de volumes massivos de informação, comercializam e anunciam as vontades de seus vassalos a seu bel-prazer. Quando acontece a eventualidade de uma disputa entre esses grandes senhores, os habitantes de seus domínios sofrem, vendo destruídas, sem aviso prévio, boa parte de suas ferramentas de trabalho.

Blogs mostram a que ponto os produtores de conteúdo se viram forçados a preparar textos que agradem ao algoritmo, que, magnânimo, promove os humildes em suas páginas de resultados. Se, por um formato, estrutura ou uso de vocabulário, a expressão não caia no gosto do algoritmo, sobrará a ela o ostracismo.

Até os governos, que como os reis do milênio passado, eram soberanos, hoje se vem forçados a negociar com os senhores feudais para que liberem o acesso a seus metadados. Até que ponto a espionagem da NSA é pior do que a feita pelo Google? Quem garante que o controle acionário do Facebookistão está livre da compra por déspotas pouco esclarecidos ou senhores de tráficos diversos?

Redes sociais criam outro tipo de dominação. Ao transformarem as mensagens de sua população em fluxos contínuos, forçam uma produção incessante de conteúdo, que, apesar de doado, será reempacotado e vendido ao melhor pagador. Sob a desculpa de dar uma escapadela de seu trabalho, muita gente leva uma vida de empregos paralelos, prejudicando a eficiência que tem com o serviço que paga as contas em nome do trabalho free-lancer para uma rede que nunca o pagará. Quem dedica uma hora diária ao Facebook termina o ano com 45 dias úteis a serviço do gigante azul, ou mais de dois meses de trabalho voluntário. E uma hora, vale lembrar, é muito abaixo da média de uso, que, conforme o usuário, passa facilmente de dez vezes essa quantia.

Desbravadores de uma fronteira desconhecida, os gigantes da rede cresceram sem limitações ou parâmetros, fundindo áreas inicialmente tão distintas quanto Tecnologia, Entretenimento e Informação. Ao perceber que a Lei de Moore barateava progressivamente a computação, empresas de Big Data resolverem tornar o processamento de dados gratuito, trocando-o por informações particulares, essas de altíssimo valor.

Da mesma forma que o Feudalismo surgiu da fragmentação dos grandes impérios, as novas empresas, recentes, surgem da fragmentação dos grandes grupos de mídia e fabricantes de hardware, incapazes de abastecer as demandas de uma população dependente de volumes cada vez maiores de informação. Trabalhando no vácuo do poder dos velhos gigantes, novos cavaleiros aos poucos construíram seus impérios, estabelecendo dentro deles novos códigos de ética, comportamento e política.

Dentro do novo sistema, os "libertadores" do povo contra os barões da grande mídia estabeleceram novas obrigações recíprocas. Caberia a eles fornecer a infra-estrutura, contanto que seus vassalos se mantivessem ocupados a minerar e divulgar as novas informações.

O sistema se mostrou tão eficiente a ponto de mal ser percebido por quem está dentro dele. O vassalo vive confortavelmente, inconsciente de sua miséria. Não há, a não ser nos mais radicais, a sensação de que algo está errado, que a relação não passa de uma forma mais sofisticada e tecnológica de manipulação.

Pois ao contrário do antigo "público-alvo", vítima das estruturas de comunicação, ao "usuário" é dada a liberdade de escolha de falar o que quiser e seguir quem bem entender, desde que nunca pare de falar. Nem de seguir. Em videogames, Instagram ou Pinterest, só tem valor quem alimenta a máquina incessantemente, prejudicando sua atenção no trânsito, suas horas de sono e seu convívio com os amigos.

Para quem se incomodar com a situação, a porta da rua continua a ser a serventia da casa, deixando claro que todo o histórico registrado ali até então poderá ser indiscriminadamente destruído. Por mais rica que fosse a propriedade digital, quem a cultivou nunca teria o direito de vendê-la ou sublocá-la. Quando muito, se sua atividade não fosse reprovada por seu senhor, é permitida a ele a comercialização de eventuais frutos, contanto que seja paga a devida comissão.

Ao contrário do senhor feudal, que não podia vender ou comercializar seus servos, novas empresas e redes são avaliadas por VCs de acordo com o número de "usuários", uma métrica não muito diferente do volume de cabeças de gado em um pasto.

Foi só com a Revolução Comercial, no fim do período medieval, que os camponeses passaram a se dar conta dos absurdos cometidos. Incomodados com o excesso de intrusão e demandas, os piratas da época passaram a agir como os Robin Hoods de hoje, capturando a informação dos silos dos ricos na tentativa de distribuí-las aos destituídos.

Modelos de crowdfunding como Indiegogo, Kickstarter e Catarse desafiam colossos como Apple e Samsung. É praticamente impossível que uma pequena empresa derrote um gigante - muitos "empreendedores" tem em sua visão um deslumbramento e desejo inequívoco de serem fagocitados pelos gigantes - mas não é difícil o cenário em que o conjunto de anões force o gigante à exaustão.

A Idade das trevas, vale lembrar, foi um dos períodos mais longos da História Ocidental contemporânea. Foi preciso uma Peste Negra e algumas revoluções para que ela chegasse ao fim, dando lugar ao Iluminismo do qual nos beneficiamos até hoje. Um dos motivos que faz com que Finlândia, Noruega e Suécia sejam exemplos de civilização está no fato de que ali a servidão nunca foi formalizada. Enquanto isso, nos ambientes mais remotos, Coronéis de todas as patentes ainda tentam sustentá-la.

Em uma sociedade de informação quem controla os dados tem o verdadeiro poder. É preciso identificar o valor das ideias de cada indivíduo, libertando-o dos feudos que o exploram.
Afinal de contas, mais do que Tecnologia e Inteligência Artificial, os maiores recursos da Rede Global são as novas linguagens e conscientizações que ela permite. Este, e não um número infinito de likes ou retweets, é o verdadeiro poder da rede.


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