Folha de S. Paulo


Muito além do Dick Tracy

Smartphones vêm ficando progressivamente mais caros e sofisticados. Muita gente, no entanto, ainda os utiliza como relógio, lanterna ou telefone. Sob esse ponto de vista, um iPhone é parecido com um Rolex: um aparelho caro demais para se ver a hora.

Mesmo tendo surgido recentemente, o smartphone parece viver uma crise de identidade. Ele tem funções demais, boa parte delas genéricas ou inúteis, meras curiosidades que raramente sobrevivem ao teste do tempo. Aplicativos de medição de nível de carpintaria, espantadores de mosquitos, medidores da qualidade do sono, leitores de e-books, instrumentos musicais, pedômetros e guias de ginástica parecem ser soluções à procura de problemas. Passada a empolgação inicial de seus usuários, muitos acabam esquecidos no disco rígido, liberando espaço para outras inutilidades.

Como o PC de antigamente, o aparelho multifuncional de bolso que um dia chamamos de celular parece ter chegado a um esgotamento de projeto. Ele é muito grande, pesado, genérico e desajeitado para a maioria das funções a que se propõe. Ao contrário do tablet, eficaz para o consumo de livros e vídeos, o smartphone dá a eterna impressão de ser a escolha errada, no bolso errado, na hora errada. Principalmente quando cai ou resolve tocar.

A onda de novos relógios de pulso digitais --os smart watches-- parece ter se adaptado para preencher essa lacuna. A categoria existe desde o início dos anos 1980, com aparelhos capazes de registrar agendas, alimentados por miniteclados. Mas antes que os primeiros PCs e PDAs mostrassem que o meio digital poderia ser confiável, ela não passava de excentricidade. Ao longo das décadas, iniciativas de diversos tamanhos tentaram conquistar esse mercado, de boutiques como a Fossil, passando por empresas de nicho como Polar e Suunto até gigantes como Microsoft e IBM, todas mal-sucedidas. O mundo ainda era muito analógico, um PC era compartilhado por toda família, ainda não se imaginava que cada pessoa teria vários aparelhos.

Com os tablets e smartphones essa visão mudou, abrindo espaço para um dispositivo que não veio substituir nenhum dos existentes, mas para complementar um ecossistema integrado. Computadores, notebooks, celulares e tablets também já tiveram seu dia de supérfluo.

Desde o ano passado que as grandes empresas e sites de crowdfunding não param de falar em smart watches. Muitas, no entanto, cometem o mesmo erro do velho Windows Mobile, tentando socar tudo que há em um smartphone para o display de pulso. Não pode dar certo. Se o problema dos celulares fosse apenas a forma com que são transportados, um bracelete chinês de R$5 para iPod teria sido a solução.

Boa parte dos novos gadgets ainda se propõe a ser um complemento para o smartphone, algo um pouco mais sofisticado do que um fone de ouvido sem fio. É desnecessário. Ao remover do telefone as funções de relógio, agenda, despertador e cronômetro, o novo aparelho já mostra a que veio. Se além disso ele for capaz de receber mensagens de texto e alertas de atualizações das redes sociais, precisará de pouco mais, talvez um GPS, para fazer muita gente reconsiderar o uso que faz de seu celular. A próxima geração de aparelhos pode ser composta de um telefone mais simples acompanhado de um relógio mais esperto. Nenhum substitui o outro, ambos se complementam.

Há frankensteins de todos os tipos nessa primeira geração de smartwatches, ainda sujeita ao Darwinismo tecnológico. Alguns protótipos pecam pelo excesso, com chip, microfone e viva-voz. Outros apresentam uma tela colorida touchscreen, à prova d'água, de alta definição. Conexão bluetooth, NFC, Wi-Fi, loja de aplicativos, GPS, processador dual-core e câmera de 5 megapixels são encontrados por aí. Com um pouco de paciência talvez até se encontre uma pulseira de couro de crocodilo.

Não é por aí. Escrever e-mails ou ver vídeos em um relógio de pulso é tão errado quanto ler livros em um telefone. Falar em um relógio de pulso é tão errado quanto fotografar com uma prancheta. Todo novo dispositivo traz em si algumas funcionalidades residuais daqueles que o precederam, mas elas são exceções. Usá-las frequentemente só descaracteriza o aparelho.

Ao se preocupar em empilhar funcionalidades, muitos desses novos patacões cometem o mesmo erro daquele relógio com calculadora dos anos 80. Um bom smart watch deve estar mais para os frequencímetros cardíacos usados por esportistas do que para um telefone de pulso, trazendo novos recursos da forma mais discreta e eficiente possível, ao mesmo tempo que desenvolvem essa nova linguagem de gestos que surgiu com o clique do mouse. Será que estalaremos os dedos para saber a previsão do tempo?

O sucesso dos smartphones vem do fato de terem se tornados verdadeiros concentradores pessoais. Neles, todas as atividades digitais e conectadas puderam, pela primeira vez, ser identificadas e personalizadas. Chegado a esse ponto, talvez esteja na hora de rever o uso que se faz da computação móvel pessoal. Em um futuro próximo ela deverá se comportar cada vez mais como um servidor web que, direto da nuvem, registra, processa e relaciona todas as atitudes de seus usuários, redirecionando-as para uma série de aparelhos minúsculos, específicos, de acordo com a necessidade e o contexto de seus usuários.

É uma situação bem diferente da que existe hoje. Se é melhor ou pior, os tempos dirão. Sou otimista, pois acredito que teremos muito a ganhar com o acesso a volumes formidáveis de informação conectada, mesmo que seja com uma relativa perda de privacidade.

Mas posso estar redondamente enganado.


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