Folha de S. Paulo


A privada pública

O tema é controverso, falar dele é quase um tabu. Pouco importam as necessidades fisiológicas humanas, o vaso sanitário e subprodutos derivados estão restritos ao linguajar técnico dos engenheiros civis e profissionais de saúde. Fora desses ambientes qualquer referência a eles ou ao ato de usá-los, mesmo que camuflada por metáforas infantis ou eufemismos de difícil compreensão, é considerada de extremo mau gosto.

As privadas, no entanto, precisam ser discutidas. De buracos no chão sobre córregos nos vilarejos mais pobres aos assentos japoneses com aquecimento automático e botões variados, a tecnologia por trás delas continua praticamente a mesma, reminiscente de um tempo em que se achava que a água era tão infinita quanto o ar ou as florestas. Sentadas ou agachadas ao redor do mundo, bilhões de pessoas contaminam água potável em sanitários variados, para depois gastar fortunas em um processo de limpeza complexo e ineficiente, inconsistente com a carência hídrica contemporânea.

Mas há indícios de que tecnologia sanitária esteja finalmente evoluindo para além da substituição da coluna de água por um reservatório. Vários condomínios propõem o aproveitamento da água das chuvas, enquanto outros, mais inovadores, sugerem até a reciclagem doméstica. Nenhuma proposta, no entanto, é tão revolucionária quanto a das privadas conectadas.

Sim, você leu direito. Por mais que pareça descabida, a ideia do vaso sanitário online é melhor do que parece à primeira vista. Mista de Internet das Coisas e Computação em Nuvem, a latrina digital deverá ser muito mais do que um simples gadget para carregar o telefone ou substituir o revisteiro enquanto se usa o quartinho. Tampouco deverá ser usada para baixar músicas, assistir a vídeos ou ampliar o tempo de uso, já tão longo.

Por mais que usuários de smartphones adorem usá-los em toaletes, a conexão de webcams e microfones deverá ser restrita por questões óbvias de privacidade, embora nunca se deva subestimar a criatividade japonesa nesse quesito. O acesso a redes sociais a partir do banheiro, tentador para indivíduos extremamente públicos ou completamente desprovidos de assunto, não deverá ser muito popular. O momento de privacidade deverá, em linhas gerais, continuar privativo. Mas o mesmo não poderá ser dito da inteligência gerada a partir dele.

Levando em conta que cada indivíduo é, de certa forma, composto pelo que come, há muitas informações individuais nos restos do processo alimentício. Equipados com sensores e reagentes, os assentos do futuro podem se transformar em laboratórios pessoais de análises clínicas, devidamente calibrados e adaptados às necessidades individuais de seus usuários.

Cada descarga cotidiana pode ser mensurada e classificada automaticamente, gerando uma base capaz de identificar dados vitais, doenças, deficiências vitamínicas e até a eficiência de dietas.

Conectadas a serviços especializados, as novas privadas podem comparar as métricas individuais a médias de grupos populacionais equivalentes. O conjunto de dados pessoais anônimos pode auxiliar a pesquisa médica e até gerar uma nova inteligência para a área de Saúde Pública, identificando deficiências e necessidades profiláticas em áreas coletivas.

Nos próximos anos existirá um grande crescimento na mensuração pessoal e interligação de bases de dados. Hábitos de consumo, deslocamento, atividade física, qualidade do sono, alimentação, horas trabalhadas e outros componentes de saúde, estilo de vida e preferências pessoais serão registrados automaticamente por sensores independentes, conectados a supercomputadores e sistemas de recomendação.

A e-latrina ainda é protótipo, mas funciona como amostra de como a Internet, nas coisas, deixará de ser uma rede genérica de comunicação para se tornar uma grande central de inteligência a partir de pequenas máquinas conectadas, cada uma com funcionalidades específicas. Dificilmente haverá um Grande Irmão, mas ninguém mais poderá se dar ao luxo excêntrico de estar sozinho.


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