Folha de S. Paulo


Passeando com a filha e o cachorro

Uma cena do bairro: uma mulher de uns 35 anos passeia com sua filha, de uns cinco anos, com um cachorrinho vira-lata. Zona oeste de São Paulo, árvores para todo lado. Dia de semana, por volta das dez horas da manhã.

Elas não parecem ter qualquer pressa. Bem alimentadas. A mãe, ainda sem o estresse da vaidade cotidiana naquele instante, tem o cabelo bem tratado.

Já o cachorro vira-lata, num bairro como esse, denota uma certa dose de "consciência social". Seguramente, um golden combinaria mais com o "cartier". Podemos dizer que ali está uma mulher de boa condição social e econômica. O que podemos deduzir além disso?

Antes, um reparo. É comum se reclamar que economistas falam em economês, que é mais difícil do que alemão medieval. Mas economia é, antes de tudo, uma gestão do doméstico (a própria raiz grega da palavra quer dizer isso), por isso, donas de casa entendem bem o que é inflação e descontos.

Por exemplo, quando se fala em "desequilíbrio fiscal nas contas do Estado" isso quer dizer, antes de tudo, que o Estado gasta mais do que ganha, e isso é semelhante a você gastar mais do que recebe como salário.

No caso do Estado existem vários agravantes, entre eles, o fato de que o dinheiro que ele gasta não foi ganho por ele, mas sim tirado de nós via impostos, que no caso do Brasil, são um assalto, ainda mais quando se leva em conta que nada recebemos em troca.

Uma cena como esta tem uma "economia" por trás. Muitos leitores me perguntam por que eu insisto em dizer que o mundo enriqueceu muito nos últimos 200 anos e, por isso, esqueceu-se de que "não existe almoço de graça". Esta cena pode nos ajudar.

Se você está andando às dez horas da manhã sem pressa com sua filha de cinco anos quer dizer que sua filha ou estuda à tarde ou está com uma gripe leve, por isso não está na escola. No caso, a menina não parece doente. Você, por sua vez, não tem um horário rígido de trabalho. Ou não trabalha.

Levando-se em conta que a região em questão (elas não devem ter ido de um lugar longe dali para levar o cachorro para passear) é de classe média alta, e que elas, apesar de vestidas casualmente, estão bem vestidas, podemos concluir que alguém está bancando aquele passeio diretamente. A grana vem de algum lugar: dos avós, do marido e pai, ou de propriedades que rendem aluguel.

O modo gostoso como conversam e prestam atenção no cachorrinho nos leva a crer que estão bem naquele instante. Possivelmente já tomaram café da manhã e não sairão dali correndo para lugar nenhum. Numa cidade como São Paulo, não ter pressa já é indicativo, em alguma medida, de condição socioeconômica estável.

Mas talvez a mãe trabalhe. Se trabalha, seu trabalho (ainda mais levando-se em conta as distâncias em São Paulo) começa mais tarde e não deve ser muito longe dali. Se ela trabalha na zona oeste (e levando-se em conta seu modo de vestir e leveza), é possível que tenha um trabalho razoavelmente bem-sucedido, o que se deve somar, provavelmente, ao trabalho bem-sucedido do marido.

Se estamos falando de dez horas da manhã, e sem pressa, talvez, se ela trabalhar, ela trabalhe em casa. Trabalhar em casa é também um sinal de luxo numa cidade como São Paulo. Além de ter menos estresse no deslocamento, a casa também não deve ser um caixote no qual pessoas se acumulam ao lado do pequeno vira-lata de sorte. Tampouco existem caixotes assim naquele bairro. Imagine o IPTU!

Uma mulher assim é o tipo de pessoa que poderia fazer uso das novas ciclofaixas. Só pessoas chiques podem abrir mão do "protagonismo do carro". A troca, normalmente, se dá entre carro e bike como locomoção (e se você não tiver muitas obrigações na agenda diária, como ir ao supermercado comprar comida para uma família de cinco pessoas) e não entre bike e trem/metrô/ônibus.

Andar de bike no dia a dia significa que ou bem você mora perto do trabalho (o que já é luxo), ou você ainda faz faculdade e não tem que sair dali correndo pra trabalhar longe.

Se você tiver que levar três filhos a escola, provavelmente, não o fará de bike.


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