Folha de S. Paulo


Um beijo no gordo

Caro Jô Soares,

Tomo a liberdade de me dirigir diretamente a você apenas para mandar um beijo, assim como fui agraciado por beijos seus anos a fio, assistindo ao seu programa –hoje em dia, ou desde que o seu show foi para as madrugadas da Globo, tenho sido obrigado a abrir mão desse carinho...

E é com carinho que me coloco ao seu lado neste momento em que você vem sendo agredido, caluniado, (in)justiçado e vilipendiado pelo simples fato de ter feito uma entrevista, veja só.

Justo você, que já fez centenas, talvez milhares de entrevistas ao longo de sua vida; que até já serviu de intérprete à Hebe Camargo certa vez em que a saudosa loira entrevistou uma celebridade estrangeira. Agora é atacado ferozmente pelas perguntas que fez ou deixou de fazer.

Moramos mais ou menos perto, portanto tive o desprazer de ver in loco a agressão que você sofreu com a pichação na frente do seu prédio. Apesar da sua tirada bem humorada ("Ainda bem que não marcaram data..."), relevando essa bobagem, que é de fato uma bobagem, fico aqui pensando: que tipo de sentimento, que tipo de entendimento da vida, qual filosofia que rege a existência de alguém que vai numa loja, compra tinta e pincel e na surdina da madrugada protetora dos covardes escreve que alguém, seja lá quem for, deve morrer?

Não se louva a morte do pior inimigo, disse certa vez dramaturgo espanhol Fernando Arrabal quando queriam que ele comemorasse o fato de o ditador Francisco Franco ter batido as botas.

Como podem então desejar o pior a alguém que dedicou a maior parte de sua vida a fazer as outras pessoas rirem –no caso, você?

Ao contrário de colegas jornalistas, não considero a tal pichação propriamente uma ameaça, porque o beócio que se propõe a fazer esse tipo de estultice não teria coragem de algo realmente perigoso.

Perigosa, a meu ver, no entanto, é a pura e simples realidade: o fato de uma atitude dessas existir em pleno século 21 e ser louvada por muitos, tantos.

Triste, muito triste...

Mas é o que temos e o que havemos de encarar, certo?

No entanto confesso que sinto-me perplexo diante desse ato ignóbil, de vez que ele ocorre num momento de recrudescimento das atitudes mais hediondas dessa nossa sociedade hipócrita, que há anos esconde, por detrás de sua "alegria" e "cordialidade", a intolerância e o ódio que ora transbordam.

Picha-se o desejo de morte, atira-se pedra na menina do candomblé, viola-se a sepultura do Chico Xavier, um poço de bondade. O que mais falta?

O fato é que me sinto na obrigação de manifestar meu carinho e meus respeitos, Jô, porque você é um patrimônio da arte e do show bizz brasileiro. Eu aqui beirando os 60 tenho você na mais deliciosa memória afetiva ao longo de décadas, desde o meu ídolo maior, o mordomo Gordon da Família Trapo, passando pela Norminha, Capitão Gay (que hoje certamente seriam vítimas de homofobia), pelo impagável Sebá (que seria chamado de petralha, claro) e por seus livros, sempre inteligentes e divertidos.

Quanto a suas entrevistas, faça-as como quiser, pergunte o que lhe aprouver, e quem não gostar que... mude de canal –simples assim.

Um beijo no gordo!


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