Folha de S. Paulo


Monumento à vida besta

Passa o tempo, muda o tempo, calor escaldante foi-se, frio de matar agora chega, matando daqui a pouco quem só tem trapos e pinga pra esquentar. Morrerão, continuarão morrendo pelos cantos sujos e fedidos, e continuaremos virando a cara para o lixo humano que todavia resiste.

E assim é que de novo homem juntou suas latas, seus papelões, seus trapos e paus tocos de cigarro e buscou abrigo rente à coluna do viaduto. De tão grande e tão cheio de gente, pensou o homem, esse viaduto é como uma casa sem parede e sem porta, sem cômodos, sem jardim, sem nada. Mas é a casa que Deus me deu, pensou o homem, arrumando como podia suas tralhas, porque lá vinha o temporal de novo, mais chuvarada para infernizar (Deus me perdoe) a vida desgraçada dessa gente toda que vive na rua, embaixo do Minhocão.

Quantos moram debaixo desse viaduto comprido desse jeito?, pensou o homem com seus botões. Quer dizer, com sua camisa suja e puída, obviamente sem botões.

Uns vão, outros chegam, mas é sempre muita gente. Quando começa a ameaçar chuva, como agora, ou à noitinha, aí a coisa fica feia. Cada um protege seu canto e seus cacarecos como pode, porque cada pilastra, cada recôndito desse monstro de concreto vale mais que uma mansão no Morumbi, pensa o homem, nem sei como é uma mansão no Morumbi, mas já ouvi falar que vale muito. E sei que o cantinho que eu tenho aqui perto do Metrô vale ouro, ainda mais no inverno, quando o ar quentinho que sai dos tubos da estação tornam o frio nojento desta cidade úmida e gelada mais suportável.

Agora o problema não é esse. É a droga da chuva, que desce e lava tudo, menos a miséria de nossas almas.

Quem parece não se importar com a chuva, ao contrário, é o vira-latas do homem do Minhocão. Ele corre, brinca com o lixo trazido pela água, late para o vento, bebe água suja até se fartar.

O negócio é esse mesmo, pensa o homem, tem que levar a vida que nem vira-latas, na brincadeira. Porque depois da chuva chega o frio pra valer, e aí o bicho vai pegar.

Mas, faça frio ou calor, seja de noite ou de dia, a droga de vida será sempre a mesma debaixo desse viaduto maldito (Deus me perdoe). Tá certo, o viaduto dá proteção, por menor que seja.

Mas será sempre um monumento a lembrar o que esta cidade faz com quem fracassou na vida.

Vida besta...


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