Folha de S. Paulo


Desacorçoado

Desacorçoado é uma palavra antiga, praticamente ninguém mais usa.

Minha mãe usava. Minha professora do primário também. A mãe para se referir ao sentimento que experimentava toda vez que eu aprontava alguma coisa cabeluda, perpetrava travessura que ia além do razoável, por exemplo cometia alguma maldade contra alguém ou algum animal - "Pra quê matar passarinho, criatura de Deus?". Usava também para expressar o que sentia diante de pessoas que a deixassem, em geral por um desvio de caráter, profundamente triste e decepcionada.

A professora, dona Benedita Célia de doce lembrança, usava esta palavra - que quer dizer nada mais nada menos que desamparado, abandonado - após tomar a tabuada, fazer um ditado ou aplicar um teste e perceber que todo o seu esforço civilizatório para fazer daquela molecada cidadãos minimamente educados tinha sido em vão, ainda havia muito a se fazer. "Assim vocês me deixam desacorçoada..."

Pois foi justamente pensando nos valores agregados a estas lembranças, valores de mãe e da santa professora primária, da herança genético-cultural que forma nosso caráter e nos faz, a muitos, não querer deixar as pessoas desacorçoadas, que eu fiquei esta semana bastante, digamos assim, desacorçoado...

Descorçoado com as pessoas que têm dinheiro suficiente para frequentar o mais caro hospital de São Paulo e que apesar disso, ou talvez por isso mesmo, acham que estão no direito não apenas de extrapolar todos os limites da civilidade xingando e ofendendo um homem público e sua mulher gravemente doente, mas também de ir ao pântano que estão se tornando as redes sociais para se gabar de sua estupidez.

Descorçoado com o "juiz" que não só foi flagrado dirigindo o carrão apreendido do Eike Batista, como declarou que, para ele, isso é absolutamente normal; para ele, note, que julga se o que os outros fazem é normal (legal) ou não, socorro!

Muito desacorçoado também fiquei diante das cenas em que fanáticos do grupo terrorista Estado Islâmico aparecem destruindo obras de arte milenares, incríveis, que foram conservadas por gerações e gerações na região em que a civilização humana fermentou. Isso um dia depois deste mesmos energúmenos terem incendiado toda uma biblioteca com livros tão ou mais valiosos que as esculturas. Não deveria estranhar nada disso, posto que estes facínoras degolam pessoas com orgulho, mas ver a História (com H) virar pó e cinza dói na alma.

Desacorçoado por saber que existem médicos como o que chamou a polícia para denunciar uma jovem que fizera um aborto, médico que não merecia mais seu título, de vez que por juramento e compromisso ético médicos devem cuidar, acolher, curar, independente de seus julgamentos morais.

Desacorçoado vou ficar daqui a pouco, quando vou tentar aplacar o calor paulistano com um bom banho, sabendo que terei direito apenas ao mínimo necessário para molhar o corpo. Afinal, como se sabe, quando acabar de vez a água a culpa terá sido minha...


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