Folha de S. Paulo


Carnaval, um filme ou um livro?

Sim, claro, você não está nem aí pra esta loucura toda chamada Carnaval, e isso é perfeitamente compreensível.

Então aqui vão duas indicações, um livro e um filme, para encarar os dias de sandice coletiva, durante os quais a alegria passa a ser praticamente uma obrigação.

Mas não é, então passe na livraria e compre "O Homem Que Amava Cachorro, de Leonardo Padura, e vá assistir a "O Jogo da Imitação", dirigido por Morten Tyldum, e estamos conversados.

A indicação não é aleatória, ou apenas anti-Carnaval. Mas trata-se de duas obras de arte daquelas em que toda a condição humana se expressa com seu explendor e glória, mas também com toda a sua mesquinharia e a sua pequenez possível. De chorar, emocionar ou doer, ambos.

O filme é a história do cientista britIanico Alan Touring, um gênio, que inventou o nda menos que o computador, na época, anos 40, máquina que tinha como objetivo decifrar a famosa Enigma, a máquina de criptografia que fatalmente levaria os nazistas à vitória na Segunda Guerra Mundial.

Não levou graças a Touring, um maluco irascível, antisocial, arrogante e deslocado no mundo, que com sua inteligência absurda e sua persistência teimosa e inconveniente, conseguiu criar o mecanismo que antecipou o fim da guerra em dois anos, com a conhecida vitória dos aliados.

Um herói? Um gênio coberto de láurea? Orgulho da raça? Nada disso, Touring era homossexual e todos os seus méritos sucumbiram diante de tamanha "monstruosidade", crimininalizada na Inglaterra hipócrita de então.
Escorraçado e tolhido de todos os seus méritos, teve de escolher: a prisão ou a castração química que o afastaria de sua "doença". Optou pela última, mas não aguentou a barra, suicidou-se em meados dos anos 50 e só teve seu heroísmo reconhecido, finalmente, décadas depois. Destaque para o show particular de Benedict Cumberbatch no papel principal e da lindinha Keira Knightley como sua discípula.

Já o livro talvez você não "vença" apenas durante o Carnaval, já que se trata de um catatau de mais de 500 páginas, através das quais o brilhante escritor cubano Padura reconstrói de maneira impressionante a trajetória de Ramón Mercander, o homem que meteu uma picareta na cabeça do grande líder revolucionário Liev Trotsky.

Defenestrado do sistema soviético e perseguido mundo afora pelo ditador Joseph Stalin, Trotsky, também como se sabe, foi parar no México, onde encontrou seu destino.

Romance histórico é aquela coisa, ninguém sabe o que Trotsky estava pensando quando levou o picaretaço, mas a empreitada de Padura é talvez uma das mais convincentes do gênero, e comove e domina a atenção de qualquer leitor que se interesse pela história e suas facetas boas e más, como as que envolvem personagem encantadores como Mercander, o próprio Trotsky, Frida Kahlo, Diego Rivera, Stalin, Beria e outros menores, assim como cenários como a Guerra Civil espanhola, a Cuba dos anos 70/80 ou a União Soviética no miserável pós stalinismo, chegando ao seu fim, e um mundo em permanente tensão entre o irreal e o possível.

Traições, heroísmo, mesquinharias, despreendimentos, amores vãos, amores verdadeiros, desilusões e sonhos que se tornam pesadelos, numa só palavra comovente, o livro.

Não agradou a ideia de livro e filme. Ok, sempre existe a alternativa de soltar a franga no bloquinho da esquina...


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