Folha de S. Paulo


Paulista, nordestino e muito mais

Nasci em São Paulo, mas não sou paulista-paulista.

Quer dizer, acho que é impossível alguém ser completamente paulista ou um paulista "da gema", designativo do qual se orgulham os caros cariocas. Terei tantas origens que nem sei se sei...

Nasci em São Paulo na babel euro-asio-nordestina da zona leste dos anos 50, e por conta disso sou meio japonês como o Carlinhos, meu primeiro amigo, e seus pais sempre na lida com a horta e o ofurô; sou italiano como meus avós paternos e tios e tias; português do sul como o avô materno e a tia querida; índio guarani como a avó materna e seus ancestrais; sou espanhol como dona Alfonsina e seu Antonio, seu Diogo e os muitos primos e netos, mas não apenas, porque estes eram catalães, e havia ainda os galegos e os bascos, fora os madrilenos, como o seu Bartolo, que fazia piões de madeira e comprava ferro velho; sou "turco" como os libaneses donos das antigas casas de móveis da avenida Amador Bueno da Veiga, com cujos filhos eu brincava e com os quais, pele morena e nariz adunco, me confundiam, ganhando com isso até os 10, 11 anos o apelido entre muitos de Turquinho; ainda sou português do norte como o Mané filho do seu Manoel e irmão da Carminda, que de carvoeiros se tornaram donos de mercado; alemão como os loirinhos de olhos azuis, que da rua Heloisa Penteado, 436, Vila Esperança, me levaram, ao menos na imaginação, a Berlim, Frankfurt, Hamburgo, Colônia: Ronald, Ruddy, Herbert e Richard, todos Hoffart; ah, e não dá para ficar apenas na origem italiana paterna, seria injusto, porque esta é toda do Vêneto: faz-se necessário mencionar os milaneses, os calabreses briguentos que usavam faca, os napolitanos divertidos e os sicilianos de muito resmungo e pouca conversa que pontificavam aqui e ali naquela vasta Zona Leste operária mais ou menos pobre, remediada, mas não miserável.

Assim como, por todos os motivos do mundo, há que se lembrar, necessariamente, dos nordestinos, meus antepassados também.

Contraparentes, amigos, vizinhos, dezenas de colegas da mãe na barraca da feira livre, colegas meus nas muitas escolas da vida, amigos trabalhadores e compadres de meu pai, cada um com seus predicados, sua cultura, sua comida, suas lembranças e sua melodia particular na voz: cearenses, alagoanos, baianos, pernambucanos, sergipanos, paraibanos, potiguares.

Tantos, tão marcantes, tão solidários, tão generosos...

E, por favor, que não se ofendam meus ancestrais gaúchos, paranaenses, catarinenses, tampouco os goianos, mato-grossenses, maranhenses, capixabas, acreanos, amazonense, paraenses. E nem, é claro, os cariocas, da gema ou não.

Estão certamente todos aqui representados.

Representados na miscigenação que forjou a história da minha família entre tantas; aqui estão na tolerância, no respeito, na admiração e na carinhosa receptividade, atávica mesmo, que sempre houve entre os meus a todos os que são de bem.

Nunca nos ofendeu sotaque ou acento, origem ou fé, muito menos cor dos olhos ou dos cabelos, quiçá da pele...

Daí a perplexidade, para não dizer a decepção - sim, ainda me decepciono com a humanidade... - diante de tanta raiva, tanta agressividade e tanta ignorância que coloca em corners opostos no ringue do segundo turno desta eleição paulistas e nordestinos como se fossem, de parte a parte, inimigos da nação.

No centro do tablado, a disseminar a xenofobia, o racismo, o ódio e a frustração predominam filhotes temporãos do espírito que remete à nossa conhecida e tenebrosa ditadura, que aparentemente persiste quase 30 anos depois, disseminando a arrogância e afiançando a impunidade.

Dá dó. E medo...


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