Folha de S. Paulo


Vai ter Copa, mas que clima...

Desde sempre eu adoro Copa do Mundo. A primeira da minha vida foi a do campeonato de 1958, mas, como tinha apenas três anos de idade, ela se resumiu às figurinhas que passaram por minhas mãos anos depois, tesouro que trazia a estampa esmaecida de Pelé, Gilmar, Zagallo, Djalma Santos e outros heróis.

Na primeira de que me lembro de verdade, a de 1962, tinha sete anos e acompanhei os jogos pelo radinho de pilhas da família, um Spica, com capa de couro marrom.

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O que mais me impressionou na época, recordo direitinho, foi ver a já então movimentada avenida Amador Bueno da Veiga, na zona leste da cidade, completamente vazia num dia de semana. Nos intervalos dos jogos, corríamos os garotos para o meio da pista a desafiar os carros inexistentes. E gritávamos o nome de Garrincha, o gênio das pernas tortas.

A derrota de 1966 foi uma decepção tão boba que deixou lembrança zero, só sei que ocorreu na Inglaterra.

Mas a de 1970, ah, que ano! Que Seleção! Que Copa!

A partir de então, adulto e logo já encarando jornalisticamente o Mundial, as Copas se sucederam com mais ou menos envolvimento, olhar mais crítico, mas sempre com torcida, sempre com fidelidade à camisa verde e amarela, sempre com emoção na hora do hino nacional, sempre um grito na garganta na hora do gol.

Nunca deixei de sofrer e torcer e desejar a vitória para o time do meu país. Fosse o time uma porcaria, estivesse o ditador de plantão (Médici, Geisel, Figueiredo...) se valendo dos louros dos jogadores, estivesse o Brasil bem ou mal das pernas dentro ou fora de campo, nas áreas sociais, econômicas, política.

Torcer pelo futebol do Brasil é algo que sempre fiz, faço e continuarei fazendo, gostem ou não –embora minha torcida em geral seja contida e discreta, sem incomodar ninguém.

Por isso, quando o Brasil foi escolhido para sediar o Mundial deste ano, imaginei o que deve ter passado pela cabeça de quase todo mundo: será uma overdose de futebol, festas intermináveis, preparativos coloridos de toda ordem, ruas pintadas, prédios engalanados, fachadas iluminadas com as cores da pátria, o povo animadão.

Ontem, com a atenção atraída por uma bandeira solitária tremulando na janela de um prédio aqui perto de casa, senti uma melancolia profunda.

Um prédio enorme, centenas de janelas, e uma, apenas uma bandeira pendurada.

"Então é isso, falta um mês para a Copa, e o que temos é uma bandeirinha?"

Chegando em casa e ainda sob influência desta triste visão, mergulhei como de praxe na janela infernal que é a tela do computador, caindo na cornucópia que de certa forma explica aquela bandeirinha triste.

Lá estavam com todas suas cores e desgraças e ódios:

A moça linchada do Guarujá em textos e imagens terríveis.

O moço que matou o moço que morreu com um vaso sanitário na cabeça no Recife.

O pai inacreditável do menino que foi morto muito provavelmente pela madrasta e enterrado num buraco raso no Rio Grande do Sul.

A foto com camisa da Seleção da menina que foi morta a pedradas por "amigas" por ciúmes em Foz de Iguaçu.

A foto que ainda não tinha visto do casal de jovens que pichavam uma pedra numa praia paulista e que foram apanhados por frequentadores e pichados da cabeça aos pés "pra largar mão de ser besta".

E também a foto da moça que não parava de falar no Teatro Municipal do Rio e que teve o supercílio e os lábios rasgados depois de um tête-à-tête violento com um francês - "bem feito, mereceu", disseram todos no Facebook.

Não bastasse isso, e noves fora que a água em São Paulo pode acabar ainda durante a Copa, ainda houve a coincidência do número 4, de que eu gosto tanto: foram 467 ônibus destruídos por motoristas e cobradores na greve do Rio de Janeiro, já são mais de 4.500 casos de dengue na cidade de São Paulo.

Vai ter Copa? Claro que vai, e vamos torcer como sempre.

Mas, que clima, hein?

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Apoio vivamente a replico aqui a sugestão do produtor cultural Pena Schimidt e que está virando campanha nas redes sociais: que o Auditório Ibirapuera seja rebatizado de Sala Jair Rodrigues.


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