Folha de S. Paulo


Uma cidade que se devora

Outro dia foi um predinho lindo, projeto de Rino Levi, que desapareceu do cenário medonho em que se transformou a tradicional rua Augusta, velho ícone de São Paulo.

Dias depois, um amigo lamentou a demolição de um conjunto de casinhas em Perdizes, um bairro que cada vez mais torna-se apenas a sombra (à sombra dos condomínios gigantes...) do pacato reduto de habitações classe média que foi um dia.

Agora, outro amigo lamenta o sumiço, no também ex-aprazível bairro de Pinheiros, de outro prédio de porte reduzido, com alguma importância no contexto cultural da região, e de diversas pequenas moradias numa mesma rua, para dar lugar a outra torre "moderna".

No lugar das residências, conta o amigo, serão erguidos 92 apartamentos. Ou seja, 92 famílias, cerca de 270 novos moradores, seguindo-se a média familiar em São Paulo apontada pelo IBGE, que é 2,9.

São 270 moradores que vão ter empregados domésticos, que receberão encomendas entregues por portadores motorizados ou não, que precisarão dos serviços de pintores, encanadores, eletricistas, que receberão amigos e parentes, que manterão pelo menos um automóvel na garagem.

Portanto, que levarão para aquele pequeno espaço do bairro uma movimentação e um distúrbio na mancha urbana para o qual a cidade não se preparou, à qual o bairro não comporta, em detrimento da qualidade de vida de todos —velhos e novos moradores.

É ocioso lembrar aqui que até outro dia o setor da prefeitura responsável pela liberação de intervenções urbanas desta natureza era dominada por uma quadrilha que amealhou meio bilhão de reais em propinas, justamente para autorizar a construção de novos prédios?

Ok, então vamos apenas nos lembrar de que, independente da corrupção e dos corruptores, São Paulo sempre se autoflagelou, destruiu-se, reconstruiu-se mal e porcamente; canibalizou-se.

Nem dá para remeter aos modernos de 1922 e sua antropofagia cultural, porque não se trata disso, mas sim de uma triste sina de degradação, sem poética nenhuma, muito menos apuro plástico de Tarsilas e tais.

Sina esta que aliás converteu a cidade de São Paulo em exemplo peculiar e talvez único de metrópole que se reconstruiu três vezes em apenas 100 anos, como constatou magistralmente o arquiteto e professor Benedito Lima de Toledo em seu hoje clássico livro "São Paulo - Três Cidades em um Século".

O livro de Toledo é de 1981, e obviamente nestas três décadas só piorou o cenário descrito no prefácio da obra pelo respeitado arquiteto e urbanista italiano Leonardo Benevolo: "As cidades brasileiras crescem muito rapidamente, e, entre elas, São Paulo mais que qualquer outra. A velocidade é tão grande a ponto de apagar, no espaço de uma vida humana, o ambiente de uma geração anterior: os jovens não conhecem a cidade onde, jovens como eles, viveram os adultos".

O que inevitavelmente vai impactar na identidade da cidade e de seus habitantes, porque, conforme constata tristemente Benevolo, "as lembranças são mais duradouras que o cenário construído, e não encontram nele um apoio e um reforço."

A conclusão, que já era óbvia em 1980, hoje é trágica: "Assim, a cidade torna-se maior e mais rica, mas cada vez menos habitável".


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