Folha de S. Paulo


Dendê, mais do que pimenta, é uma coisa bem fácil de errar

Ernesto Rodrigues Neto/Divulgação
O bom exagero de ingredientes do bobó
O bom exagero de ingredientes do bobó

Divido a comida brasileira em grandes "sistemas gastronômicos". A comida baiana é um dos três na minha classificação. Chamo assim, em licença antropológica, as cozinhas completas, com grandes pratos emblemáticos, comida de rua, doçaria. E ingredientes, muitos produtos locais. Um receituário que ocupa todas as possibilidades de refeição, com comida para festas, para dias específicos.

Os outros dois são a cozinha mineira e a paraense. Não é uma tese, todo lugar tem seus pratos, mas essa abrangência da mesa completa não ocorre em toda parte. Podem contestar, é meu ponto de vista -um estudo feito com o garfo, não com os livros.

E o problema dos três sistemas é semelhante. Pará, Minas e Bahia viajam mal para fora de sua geografia e são difíceis de achar em restaurantes, mesmo nos locais. Sempre me intrigou porque um bom restaurante baiano não pegava aqui. Seria o dendê? O coentro?

A parte "fast-rua" se resolveu quando abriram o Tabuleiro do Acarajé (foi tema da coluna, em novembro do ano passado ), com comida rápida, de consumir em pé. E, como diz o nome, especializado em acarajé.

Faltavam os vatapás, os bobós, essa comida ampla e generosa. Parece que o Sotero já existe faz tempo. Eu vivo num mundo desligado —estou sempre pensando em outra coisa— e só percebi mês passado. E não paro de pensar nele agora.

Consultei amigos baianos, eles gostam de lá. Então, não é uma comida amenizada para o gosto geral. Tem sua fiação conectada com a origem. E é cozinha sofisticada e equilibrada. Há a presença de um cozinheiro, um chef —coisa que nem sempre existe nesta zona alimentar, o regionalismo.

As pessoas pensam que receitas estabelecidas, os pratos típicos, são gravadas em mármore, como se não houvesse dezenas de versões e alguém mexendo na panela, acrescentando e tirando temperos, gostos.

Digo equilibrada pois dendê, mais do que pimenta, é uma coisa bem fácil de errar. A única vez que fui a Salvador (sim, deveria ir mais, é lindo) comi em alguns lugares em que se escorregava no dendê —era preciso segurar nas paredes e era indigesto. A capacidade de dosar sua presença é fina sintonia.

Prefiro bobó ao vatapá. Gosto da untuosidade extra da mandioca transformada em purê, daquele exagero de ingredientes, dos passos infinitos da preparação, tudo para resultar numa coisa cremosa, em que se tem que apurar a atenção para notar cada detalhe. Comida de colher, reconfortante, com alguns camarões inteiros, que fazem o contraponto sólido para a delícia pastosa.

Falta algo? A cocada mole do final.

*

Sotero Cozinha Original
Onde: r. Barão de Tatuí, 272, Vila Buarque; tel. 3666-3066.
Quando: de ter. a qui., das 12h às 15h e das 18h às 23h; sex., das 12h às 16h e das 18h às 23h; sáb., das 12h às 23h.; dom., das 12h às 22h.

*

Dendê rima com Riesling
Lá vamos outra vez. Precisa de vinho? Esta é uma coluna um pouco sobre vinhos que vive implicando com a bebida ou com a mania de harmonizar tudo. Tenho um amigo que diz que em breve teremos degustação de cheiro de fósforos e harmonização de refrigerantes. Felizmente, nesse caso acho que os vinhos têm algo a dizer, sim. Contribui muito um Riesling acidinho indo ao encontro do dendê, da pimenta, do coentro. Um Chardonnay fresco, sem madeira, também é boa ideia.

*

O mexido
Quando eu era criança, mexido era o resto de tudo, misturado com arroz, ovo, farinha, uma xepa de geladeira. O Sotero tem um mexido baiano que talvez seja meu prato favorito. Aquele horror ao vazio, tudo preenchido. Numa garfada vem farofa de manteiga, noutra um naco de carne desfiada. Não falta nada e é coroado com um ovo frito por cima. Outra coisa, quero recomendar um livro que carrego para todo lado, "A comida baiana de Jorge Amado" de Paloma Jorge Amado, lindamente editado pela Rita Lobo. Elas conseguiram tirar qualquer folclorização do assunto, o que ajuda muito a entender a comida, sem patriotadas. E o livro é de uma elegância gráfica, para folhear sem precisar cozinhar, se quiser. Um dos meus favoritos na estante da cozinha.

*

Vinhos da semana
(1) Lapeyre Jurançon Sec, R$ 149 (Premium).
(2) Grans-Fassian Mineralschiefer, R$ 100,76 (Decanter).
(3) Anakena Chardonnay, R$ 55 (Winebrands).
(4) Salton Paradoxo Chardonnay, R$ 44,90 (Vinhos e Vinhos).

* Valores de referência

Divulgação

Endereço da página:

Links no texto: