Folha de S. Paulo


Cortes de carnes seguem tão intrincados quanto teoremas

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Costeleta de cordeiro, do Fogo de Chão
Costeleta de cordeiro, do Fogo de Chão

A torre de babel perfeita é falar sobre cortes de carnes. Conseguem traduzir Shakespeare e Proust (concordo, não fica ótimo, mas vale tentar) e os cortes de carnes continuam tão intrincados quanto um dos teoremas que dão prêmio Nobel a quem os resolve.

Além dos nomes obviamente serem diferentes em cada língua, os pedaços a que se referem são outros, os bichos desossados de outra forma. Picanha argentina, como todo mundo sabe (ou não?) não existia na Argentina até que a invenção brasileira foi exportada para lá.

Os livrões elucidam pouco, trazem mapas de como é um boi nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra. Em geral só esses três. E nós que nos viremos com a experiência, tentando encaixar esse tangram animal. Onde fica mesmo a fraldinha?

Quando eu era criança, as galinhas não só existiam como chegavam vivas em casa. E era um apartamento. Dormiam uma noite, isoladas, para não haver risco de "pegarem amizade" e no dia seguinte, zás, eram guilhotinadas ou coisa pior. Voltavam reluzentes e lindas no seu denso molho pardo, feito com o sangue.

Pouco a pouco as galinhas (e porcos, bois) foram se desmembrando, perdendo a forma, ganhando assombros. O coração era único, e era meu por direito, que também era único filho. De repente surgiu o quilo de coraçõezinhos. Como assim? Dezenas do meu acepipe favorito?

As mesmas pessoas que viam com horror o sacrifício da ave viva não viram nada demais no filme de terror que é essa fileira de embalagens de isopor com partes separadas do todo, galinhas sem cabeça, sem pés, só peitos, só coxas. Um frango só moelas!

E há as carnes que pegam e outras não. O marreco reina em Santa Catarina, porco está no seu revival, merecido, comido no país todo e vivendo sua glória, depois de anos de exclusão (era perigoso, colesterol, doenças, estas coisas). Coelho? Eu como uma vez por mês, pelo menos, gosto muito, fácil de fazer, saboroso, permite belas paneladas. Não entra no cardápio, coelho permanece tabu, um ausente. E o cordeiro.

É bicho que me faz salivar, uma vez comi um no Uruguai, bem na fronteira (os vinhedos da vinícola Carrau, em Cerro Chapéu, coincidem com a divisão entre os países), sentado na varanda com um Tannat, vendo o Brasil do outro lado e espiando a escolha do jantar ainda pastando logo ali. Escolheram um e ele fez a noite, assado na brasa.

O Fogo de Chão está com três cortes novos de cordeiro no menu, temporariamente, com os dois fixos são cinco. Fui provar todos, é curioso ir a uma churrascaria daquela magnitude, com tantas carnes e comer só cordeiro. Descrevo ao lado os cortes e falo dos vinhos, depois do sofrimento de tentar acertar com a feijoada, vinho e cordeiro fazem as férias para os desafios.

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Fogo de chão
Onde: av. Moreira Guimarães, 964, Indianópolis; tel. 5056-1795.
Quando: de seg. a sáb., das 12h às 23h30; dom., das 12h às 22h30.

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Sobre fraldinhas e cordeiros

Havia muito tempo que não ia ao Fogo de Chão. Apesar de gostar muito do padrão da casa e do burburinho festivo (tem dias que eremitas gostam de sair), eu me confundia na velocidade ansiosa em que ficava, o que me perturbava. Foi a frase "festival do cordeiro" que me atraiu e foi uma boa surpresa ver o restaurante que mais gosto do grupo, na av. Moreira Guimarães, perto do aeroporto de Congonhas, reformado e confortável.

No festival há cinco cortes (picanha, pernil, carré, costeleta e paleta) de cordeiros uruguaios e patagônicos. A picanha e a costeleta encantaram.

A novidade é poder pedir as outras carnes à la carte. Sem os cordeiros eu me concentraria na fraldinha com seriedade e esqueceria dos divertimentos, como saladas, linguiças e o bom pão de queijo. E uma cuia de mate no final.

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No Uruguai

Não escondo meu amor por esse país que, segundo o poeta Murilo Mendes, nem existe. A noite que passei nos Carrau, cujo cordeiro contei ao lado, tinha um eclipse lunar, um enólogo italiano, outra russa, um sommelier cubano, o saca-rolha veloz dos anfitriões buscando garrafas raras, esquecidas, de safras antigas, nos porões e aquele estranho sentimento de ter morrido e aparecido num delírio com roteiro de Jean Claude Carrière. E do que menos se falou foi de vinho, o que é um ótimo sinal.

Indico aqui, separado, o Amat das Bodegas Carrau (importado pela Zahil), talvez tenha sido ele que causou a confortável estranheza de paraíso recuperado. E é tão perto, basta pular o alambrado fronteiriço.

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Vinhos da semana

(1) Garzon Reserva Tannat, R$ 106 (World Wine)
(2) Marichal Premium, R$ 86,85 (Ravin)
(3) Pisano Cisplatino Tannat, R$ 65 (Mistral)
(4) Viñedo de los Vientos Tannat, R$ 38 (wine.com.br )

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