Folha de S. Paulo


Medo atrapalha a recriação da culinária mexicana em São Paulo

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 27-04-2011, 14h42:Caderno especial Gastronomia. Retrato da chef e escritora a mexicana Lourdes Hernandez em sua casa em Pinheiros onde tambem abre sua casa para clientes (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, ESPECIAIS) ***ESPECIAL GASTRONOMIA***
A cozinheira mexicana Lourdes Hernández em sua casa no Brasil, em 2011

Passei, de novo, um mês no México. Eu já tinha ido para lá em outubro do ano passado. O país entra no seu cérebro de modo sem volta. Fiquei a vida toda fugindo dele, de sua altitude, sua comida, sua paisagem, tudo exuberante e forte demais para o que eu julgava "minhas demasiadas sensibilidades". Mas fui e me apaixonei. Virou mania.

Leio relatos de viagens, livros de receitas e releio o ensaio brilhante de Octavio Paz sobre o país. Para mudar de assunto, folheio o livro com as fotos lindas de Juan Rulfo, que vi numa exposição em Puebla.

É como uma droga pesada que não sai do seu organismo: está tudo normal no meu dia e, de repente, ele volta, animado nas suas cores todas. Nesses momentos, fico em estado de necessidade mexicana. Preciso comer e sentir todas as sensações vividas por lá.

A forma mais simples de ter os lugares que você gosta à mão é a comida. Mas, aí, constato que a comida mexicana não viaja muito bem. E a culpa é nossa.

Explico: há receitas que são quase impossíveis fora do seu lugar natural. A afirmação vale até mesmo para o Brasil. É difícil um tacacá comido aqui reproduzir o da rua em Belém do Pará (sim, o da Mara Salles, no Tordesilhas, al. Tietê, 489, consegue chegar lá), pois lá está um calor amalucado e aquela umidade de atravessar com baldes. Tem um ambiente do prato que é só dele.

Mas falo de outra coisa. Não dá para reproduzir tudo da comida mexicana. Falta o cuitacloche (fungo do milho) fresco, falta a variedade de milhos e a tortilha moldada na mão que é o cheiro do país... Tudo é perfumado pelo aroma do milho amassado, assado. Tive até uma síndrome de abstinência de pão de trigo na minha estada, tamanho é o uso do milho em tudo no dia a dia.

Anos atrás tinha a Lourdes Hernandez, que recebeu em casa por uma década (e salvava os mexicanos por vocação) expatriados daqueles gostos, como eu. Ela voltou para lá e ficamos de prato vazio. Ela trazia coisas, é fato. Mas com temperos e seu talento nutria nossa vontade com eficácia.

O que agora está atrapalhando a recriação do México em São Paulo é o medo. A comida está tímida, quer agradar um gosto brasileiro. "Tem pouco coentro" se traduz em nenhum coentro. "É suave", ou seja, nada de pimenta. Escrevi meses atrás, em janeiro, sobre um agradável restaurante mexicano no centro, onde faltava coentro, mas a comida era boa. Recomendaram-me outro, "bem mais autêntico". Era péssimo. Não vou citar o nome. Não sou o crítico da revista nem é o propósito desta coluna, mas acabei me virando em casa com latinhas trazidas de viagem. O jeito é ir de novo para o México.

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Guacamole
Não tem desculpa para fazer um guacamole ruim. Os ingredientes não são misteriosos: abacate, cebola, tomates... Tem gente que gosta em pasta, tão homogênea que parece passada no liquidificador e, depois, na peneira. Prefiro "pedaçudo", entre a salada e um molho. Comi assim em alguns lugares, como no inigualável restaurante Nicos, num bairro menos conhecido da Cidade do México (Claveria, uma simpática "colonia", como lá chamam essas velhas cidades e vilas que foram sendo engolidas pela megalópole).

O Nicos é como os restaurantes do centro velho de São Paulo: sempre iguais, com meio século de vida e clientela conhecida pelo nome. Você pede guacamole e é um pequeno show. Vem um carrinho com os ingredientes e o "mocajete" (o pilão de pedra em que se prepara a receita). E pode participar. "Quero menos cebola, um pouco mais de tomate e capriche na pimenta" e o garçom vai fazendo, socando ali na sua frente. Fica com pedaços de abacate, tem textura.

Outra coisa são os moles, molhos escuros e pegajosos, com chocolate muito amargo, terroso. Esses têm mil receitas. Cada casa faz a sua e nelas são usadas centenas de ingredientes. Não há como reproduzir, levaria semanas só para reunir tudo. Também acham-se em vidro no fundo das malas dos viajantes mais espertos.

Convenhamos, não queremos comer essa comida ou já estaríamos comendo. Se temos Franças, Espanhas, Portugais e Itálias por aqui, bastava querer alguns Méxicos. Pesem na mão, soltem o tempero sem medo, aumentem os sabores. Ou desistam de vez.

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Vinhos da semana

(1) San Marzano Taló Primitivo-Merlot Tarantino, R$ 99 (Grand Cru).

(2) Antichello Valpolicella, R$ 98,42 (Ravin).

(3) Expression Rouge, R$ 62 (Delacroix).

(4) Petit ballade Syrah Cabernet, R$ 59,20 (Vinci).
p(gallery). Vinhos da semana


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