Folha de S. Paulo


Os carnudos peixes de rio, de gordura presente e saborosa

Adriano Vizoni/Folhapress
SAO PAULO - SP - BRASIL, 07-04-2017, 15h00: RANCHO DA TRAIRA. Espeto de Pintado na brasa do restaurante Rancho da Traira. (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, VOLTA & MESA) ***EXCLUSIVO FSP***
Espeto de pintado na brasa do Rancho da Traíra

Peixe é uma coisa perigosa. Não por fazer mal ou por atacar surfistas na praia. É um assunto esquivo, complicado. Escrever sobre um prato é fácil. "Comi um lombo assado, estava bom", não há dúvidas nessa frase.

Mas sempre que escrevo sobre peixes entro em complicações. Primeiro há os nomes, em seguida as variedades. E a minha dúvida atual: queria criar uma sólida classificação, estabelecer definitivamente a diferença entre peixes de água doce e salgada.

Adriano Vizoni/Folhapress
SAO PAULO - SP - BRASIL, 07-04-2017, 15h00: RANCHO DA TRAIRA. Ambiente e movimentacao no restaurante Rancho da Traira. (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress, VOLTA & MESA) ***EXCLUSIVO FSP***
O salão do restaurante Rancho da Traíra

Tentei dizer que os peixes de rio são mais gordos que os de mar, mas eu me lembrei do toro, a parte mais desejada e valorizada do atum, que acabou com a minha afirmação. Tentei outra coisa, uns têm escamas e os outros, pele e até couro.

Errado também, há peixes de rio com escamas e de mar sem. Pode piorar: há os de rio que também vivem no mar e vice-versa. Uma confusão. O que sobrou para um esboço de diferença foi o sabor.

Acho os peixes de rio mais carnudos, com sabor menos salino. Mas isso é tão subjetivo. Não conheço muitos de água doce estrangeiros. Carpas, trutas?

Os brasileiros, posso dizer, têm uma gordura presente e saborosa. São pouco atléticos, ficam ali de tocaia, esperando suas presas, dormitam no fundo lodoso dos rios.

O gigantesco e de aparência dócil pirarucu, que vi na Fundaçao Goeldi, em Belém do Pará, praticamente um búfalo, ruminando encalhado no seu poço barrento, é o meu modelo. Carne intensa, bastante gordura, muito sabor. Gosto muito de pirarucu.

As postas de dourado (que é diferente do outro peixe dourada - como se nota, isso não acaba nunca, é preciso uma vida de dedicação para entender) que apareciam na minha infância longe da costa eram deliciosas.

O solavanco intelectual, essa necessidade de ordenar em estantes, veio porque eu fui comer, como faço mensalmente, no Rancho da Traíra, único restaurante na cidade (que eu saiba) só de peixes de rio.

Meu prato predileto lá é o pintado. É feito na brasa, pedaçudo e entremeado no espeto de churrasco, com clássicas cebolas inteiras e tomates. O tomate sempre sobra no meu prato, fica murcho e não gosto. Mas a gordurinha do peixe dissolvida pelo calor das brasas e o toque enfumaçado que elas agregam à carne é delicioso. Vem com arroz a grega, essa forma de nostalgia, que suga um pouco da gordura peixosa e com gosto de terra. Também gosto da traíra, servida inteira.

O Rancho na verdade é um pouco parecido ao espaço de uma grande garagem, restaurante de bairro com cara de interior, fica no ponto final do ônibus elétrico (tão silencioso, antigo, discreto, que penso que sobreviveu por não ser percebido). Tem uma pracinha na frente, esses encantos aqui do que chamo de "ilha da Aclimação", separada pelo estilo de vida do resto de São Paulo -sou bairrista mesmo. Tem outra unidade sei lá onde, mas só essa me interessa.

Rancho da Traíra
Onde r. Machado de Assis, 556, Vila Mariana, tel. 5571-3051.
Quando seg., das 12h às 15h; ter. a qui., das 12h às 15h e das 18h às 23h; sex., das 12h às 15h e das 19h à 0h; sáb., das 12h às 16h e das 19h à 0h; dom. das 12h às 17h.

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Vinhos da semana
(1) Bila-Haut branco, R$ 99, (Mistral).
(2) Aphros Ten, R$ 98 (Wine Lovers).
(3) Urban Uco Sauvignon Blanc, R$ 59 (Vinci).
(4) Gamay Nouveau 2017, R$ 47 (Miolo).

*Valores de referência

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Sinceridades
Se os nomes e a tipologia dos peixes são permanente mistério (e o perigo de erro constante), a combinação com os vinhos é tarefa menos complicada, apesar de polêmica. A resposta automática "com peixes vinho branco" é simplificadora e apenas disfarça o problema.
De que vinho branco se fala?

Vinho branco existe em centenas de estilos, com muito gosto de carvalho ou sem nenhuma passagem por tonéis de madeira, com vivacidade da acidez ou mais madurões, encorpados. Alguns são para beber jovens, outros para beber depois de um tempo de espera na garrafa. Sem falar das uvas espalhadas pelo mundo, nem mesmo uma única casta dá vinhos iguais, depende de solo, clima, decisões de produtores.

Quem diz que vinho é simples está enganando o leitor. Vinho é muito complexo. Nisso está toda a farra, jamais chegar a lugar algum. O eterno teste é o prazer. Vale como diversão, não como ciência exata. Hoje, estou sincerão.

Provar muitos vinhos com coisas diferentes é a alegria e não há nenhuma obrigação de acertar.

Com os peixes gordurosos eu gosto de brancos poderosos, gordinhos de corpo. Mas até alguns tintos leves ou bem envelhecidos ficam bons. Minha velha fórmula de peixes amazônicos com os Gran Reserva espanhóis da região da Rioja está valendo. Uma costela de tambaqui fica ótima com Marqués de Riscal. Também gosto daqueles tintos que ficam bem gelados, como a família dos Gamays, o mais conhecido (e xingado) deles o Beaujolais.

Escolhi brancos de diferentes origens, com as características que aprecio com o pintado na brasa.


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