Folha de S. Paulo


Deixei o medo de lado e encarei um restaurante coreano (e seus utensílios especiais)

Gabriel Cabral/Folhapress
Os
Os "equipamentos especiais" para comer no Bicol

Moro no bairro mais coreano da cidade e vou poucas vezes aos restaurantes típicos de lá, sempre optando por chineses, japoneses ou tailandeses.

Uma das razões é que não gosto do que meu companheiro chama de "comida de esportes de contato". Isso é, ter que trabalhar na mesa de jantar, enfrentar estranhas pinças, martelinhos, arsenal de carpintaria gastronômica.

Pratos como fondues, caranguejo, caracóis e —aqui o ponto— o chamado churrasco coreano (bulgogi), pedem sua ação de comensal, equipamentos especiais e destreza. É preciso agir demais, finalizar a comida você mesmo.

No caso do churrasco coreano, a missão é assar pedacinhos de carnes e legumes sobre aquelas chapinhas soltadoras de fumaça, que me causam desconforto, mesmo que depois de comer eu goste.

Sou canhoto, inábil, deixo cair uns pedacinhos de comida, quase incendeio um guardanapo no fogareiro portátil, um desastre. O resumo é: não vou a restaurantes para cozinhar; quando quero, eu o faço em casa.

Mas há mais coisa na comida coreana que os grelhados na chapa. Fui conhecer o Bicol, aqui na Aclimação, e comi duas delícias.

Gabriel Cabral/Folhapress
Naktchi Dor-sot, um risoto coreano apimentado de polvo, no Bicol
Naktchi Dor-sot, um risoto coreano apimentado de polvo, no Bicol

Como sempre, no desconhecido, aconteceu o momento de pânico e constrangimento. Vale para tudo, chegar a um lugar completamente estranho e precisar fazer algo simples, tomar um ônibus, por exemplo, sem saber se o embarque acontece pela porta da frente, se o pagamento é feito ao motorista, se é preciso ter um ticket, se é preciso ter o dinheiro trocado, em moedas exóticas. Essas coisas assim, triviais, que são pequenas vergonhas para o turista sem experiência.

Pedi um macarrão frio de legumes e um arroz quente de polvo, um "ufa!" nos dois casos. Vieram cumbucas com comida aromática e dentro do esperado (descrevo os pratos ao lado). Mas...terminado de colocar a mesa o garçom disse: "A tesoura está ali".

Gelei. Olhei o objeto, uma longa tesoura pontiaguda, enrolada num guardanapo, esperando seu momento de entrar em cena. O que fazer com ela, como fingir naturalidade? E quando usá-la? O objeto lá, indisfarçável, não dá para ignorar uma grande tesoura sobre a mesa ao lado dos pratos, sem que eu pudesse fingir que não ia usá-la. Simular uma ida ao banheiro, deixando o pagamento na mesa e sumir me passou pela cabeça.

Por sorte estava na primeira mesa, o dono viu o meu semblante carregado e veio sem hesitar: "É para cortar o macarrão, senão não dá para comer os fios longos demais". Pegou a tesoura e em quatro cortadas, como um jardineiro exímio podando uma sebe, resolveu o assunto. "Agora é misturar tudo e comer. Coloca vinagre, é como fica bom". Obedeci.

Bicol
Onde: praça General Polidoro, 111, Aclimação, tel. 3207-9893
Quando: seg., qua., qui. e sex., das 12h às 14h30 e entre 17h30 e 21h30; ter., das 17h30 às 21h30; sáb. e dom., das 11h30 às 15h e entre 17h30 e 21h30.

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Cinco sabores

Leio nos livrões que a cozinha coreana se baseia no equilíbrio oriental dos cinco sabores: salgado, doce, ácido, amargo e quente. Entendi a presença da batata doce (o macarrão era feito com ela), a recomendação para acrescentar o delicado vinagre de arroz na mistura. O quente nem precisa dizer, era da pimenta. E o amargo? Os coreanos consideram o gengibre representante deste elemento.

E, além disso, tem as cores, um bom prato precisa ter (ou tentar) um arranjo bonito entre vermelhos, verdes, amarelos, branco e preto. Sem esquecer do mais conhecido prato de lá a chegar ao Ocidente: o kimchi, que é uma conserva bem forte.

Eu dei uma bela derrapada, não anotei o nome dos pratos que comi, tinha tomado muito sol na cabeça e estava obnubilado —bebi chá, aviso, foi sol mesmo. Mas foram: um macarrão de batata-doce com legumes, servido frio, bem adequado para o dia sufocante. E uma panelinha de pedra fumegante com o arroz com polvo, um bibimbap. Ambos bastante temperados, puxados no picante.

Não bebi vinho, mas teria combinado muito com um branco gelado, no estilo simplão (penso nos Verdejos espanhóis, nos Verdes portugueses, ou naquele delicioso Verdecca San Marzano que bebi sob sol parecido, esturricante, na Puglia, uma das melhores viagens que fiz nos últimos tempos. Encheu minha boca de água agora). O restaurante não tem vinhos, mas tem taxa de rolha —permite que se leve a garrafa mediante o pagamento de uma taxa.

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Divulgação

Vinhos da semana

1. Cartuxa Branco, R$ 149 (Adega Alentejana)
2. Acústic, R$ 100 (Vinci)
3. Viña Falernia Sangiovese, R$67 (Premium)
4. Il Pumo Sauvignon Malvasia, R$ 65 (Grand Cru).

* valores de referência


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