Folha de S. Paulo


Feijão de tropeiro tem até hoje uma divisão que provoca discussões

Eduardo Knapp/Folhapress
Sao Paulo, SP, BRASIL, 25-01-2017: Volta & Mesa. Prato Lombo Tropeiro (lombo, feijao tropeiro, arroz e mandioca frita) servido no restaurante Casinha Mineira no bairro Cerqueira Cezar (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress, SUPLEMENTOS).
Prato Lombo Tropeiro (lombo, feijão tropeiro, arroz e mandioca frita) servido no Casinha Mineira

Já fui mineiro, há muitos anos. Daqueles do caminho do mato fundo das Minas Gerais. Cresci nutrido pelo completo sistema gastronômico da região, com sua quitanda, os grandes pratos emblemáticos e a doçaria maravilhosa.

Minas sempre "dentro e fundo" como escreveu Guimarães Rosa, era quase impermeável ao que vinha de fora. Montanhês típico, fui comer peixe já adulto. O feijão era sempre roxinho, verdura era a couve, a taioba e o almeirão —e a muito mencionada e pouco conhecida ora-pro-nobis, verdura de canto gregoriano.

Estava arrumando estantes, neste janeiro de tédio, e fiquei folheando Pedro Nava e Adélia Prado ("Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava".). Ninguém descreveu melhor esta comida que Nava. Ele não dá receita, muitas destas coisas ancestrais, compostas mais por adjetivos e descrições textuais que por pesos e medidas. Chama o tropeiro de feijão nômade, em contraste com o sedentário feijão da feijoada.

Naquele tempo de poucos restaurantes, as receitas favoritas, como o feijão de tropeiro, só valiam feitas no ambiente familiar. Até eram servidas em restaurantes, mas numa versão para turistas.

O feijão de tropeiro tem até hoje uma divisão que provoca discussões, rios de banha já escorreram pelo assunto: o tropeiro seco versus o tropeiro úmido.

Minha família sempre foi pelo seco, adesão que mantenho até hoje. O prato é uma espécie de paçoca, era para ser comido pelos condutores de tropas pelo sertão, não faz sentido que seja com caldo.

A versão que gosto e pratico é quase uma farofa rica de feijão, a farinha ocupa um papel decisivo no preparo.

Resposta certa não há, como acontece nos pratos regionais estabelecidos pela memória afetiva e pela transmissão oral, receitas nunca definidas.

Quanto mais úmido, mais parecido com o tutu e eu abomino tutu por razões que desconheço.

Sou um zelote de cardápios, aparece um restaurante com o título de "cozinha mineira" e vou ler o menu. Logo que o primeiro sintoma de outra coisa surge (já achei escondidinho, feijoada, até tiramisù!) eu me afasto cabisbaixo. "Ainda não foi desta vez", penso desconsolado.

Depois das leituras, tive vontade de comer um lombo à mineira, com couve, feijão de tropeiro e torresmo. Mas onde? Sempre me desapontei nos restaurantes.

Arrisquei um que não tinha nenhuma cara de que me surpreenderia, o Casinha Mineira, na Bela Vista. Me enganei: encontrei um lombo extraordinário, em suntuoso caldo.

Esta é a minha comida de conforto, talvez pelo nomadismo, talvez pela portabilidade.

Casinha Mineira
Onde: r. São Carlos do Pinhal, 445, Bela Vista, tel. 3266-5208
Quando: seg., das 11h30 às 15h; ter. a sex. das 11h30 às 15h e das 18h às 22h; sáb., das 12h às 16h e das 18 às 22h; dom., das 12h às 16h.

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A redundância láctea

Os argentinos e uruguaios disputam a primazia do doce de leite. Em Minas, não se discute, todo mundo sabe que o doce é de lá. E ainda inventaram a variedade: tem o pastoso claro e o escuro, em barra, o talhado (meu favorito, difícil de encontrar), as balas, os quadradinhos no ponto puxa-puxa e o na palha (deve haver outros que esqueci).

Na Casinha Mineira tem na palha, mais para o ponto de bala, ainda assim delicioso. São raras as receitas que têm uma origem exata e uma data, em geral vão acontecendo em vários lugares ao mesmo tempo. Quando criança, eu gostava de doce de leite mole e clarinho com uma pelota de creme batido por cima e uma fatia de queijo branco do lado. Inventei a trilogia de leite sem saber.

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Marvada uva

Toda comida tem um vinho. Mas precisa? Em Minas, seria um trago antes, um durante e um depois, de uma cachaça da mesma fazenda que criou o porco e produziu o leite —o conceito atual de "do criador à mesa' aplicado à vida toda. Mas vinho não incomoda, por isso comi meu feijão com um tinto potente na estrutura e amável na boca, um Rioja espanhol. Era delicado o suficiente para não ofender o lombo mas com a força para dar conta de feijão, cebolas, alho e pimentinha. Se fosse o lombo solitário, beberia um Riesling com leve toque adocicado, uma delícia.

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Vinhos da semana

Vinhos da semana da coluna Volta&Mesa de 29.01

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