Chegou o momento incontornável: "qual vinho combina com peru?". É meu constrangimento, pois não gosto da ave. Não é ódio nem aversão, se me apresentam eu como, mastigo sem entusiasmo. Peru é uma coisa insossa, chicletes bípede, sem gosto, sem interesse, nunca será minha escolha para a ceia de Natal.
Na minha família não se comia isso. Havia dois momentos alimentares distintos: a ceia noturna, mais austera pelo horário, e o vasto almoço do dia seguinte. Apareciam o pernil –assado na padaria, era grande demais para o forno doméstico–, o arroz de forno bem português, com paio, o famoso escabeche frio de lagarto e o famosíssimo bolo de chocolate da Tia Helena.
Alguns anos mais tarde, foi incorporado um salpicão de frango, novidade discutida e nunca totalmente aceita (gosto muito) e o tender (como o anterior, repudiado pelos tradicionalistas, mas que até hoje mantenho na mesa). Panetone conheci adulto, décadas depois.
Posso até propor vinhos para o Natal atual, mas a minha mesa é essa, com o acréscimo das castanhas, dos figos secos, de marzipã e de uma ou outra latinha de foie gras, trazida de viagem.
O bolo de chocolate era a marca mais forte das festas, envolvia a família toda, tão importante quanto decidir o estilo da decoração da árvore e a complicada montagem do presépio da minha outra tia, Lúcia.
Felipe Gabriel/Folhapress | ||
Geladeira do açougue Beef Passion |
Tia Lúcia fazia montanha de papier machê, lago de espelho, caminhos de areia branquinha e reanimava os musgos com água para a grande cena do nascimento na manjedoura. O bolo era no estilo dos "puddings" ingleses, lotado de frutas secas, cristalizadas e com camadas de pão de ló embebidas em conhaque. Era enorme e durava até o almoço de 1º de janeiro.
O movimento em torno dele não terminava no seu consumo, cada ano era assunto de discussão, praticamente se falava de "safras": o do ano passado teria sido melhor pelas escamas de castanha-do-pará torradas e semeadas por cima, ou pelo tipo de passas usadas.
No caderno de receitas da tia, que ficou comigo, há versões, rabiscos, alterações, como num velho manuscrito muito trabalhado pelo autor. O Natal era uma festa cheia de ocupações e não sobrava tempo para a irrelevância do peru, mesmo que ele aparecesse na mesa (nunca aconteceu).
Como as receitas são irrecuperáveis como as tias, fui modesto em refazer apenas o escabeche, comprei o lagarto e tentei. Foi uma boa oportunidade para conhecer uma excelente casa de carnes, mas não consegui o mesmo resultado do passado. Não sofro de nostalgias, contento-me em lembrar e por ter tentado.
BEEF PASSION
ONDE rua Barão de Tatuí, 229, Vila Buarque, tel. 3661-8090
QUANDO seg. a sex., das 10h às 18h; sáb., das 10h às 14h
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Sem enochatice no Natal
Os vinhos para o Natal devem ser esquecidos, são coadjuvantes da festa, precisam ficar na mesa, fáceis, disponíveis, sem protagonismo, calados no seu canto.
Falar deles durante a comida será inconveniente, é preciso que sejam gostosos, generosos e não sirvam de assunto.
Guarde a grande garrafa para outro momento, abra vinhos diferentes, desencontrados, na ordem que quiser. Importante que não faltem, que sobrem e só.
Eu escolho Portos, pois têm cheiro natalino, são amigos das castanhas e das volúpias da mesa farta. Mas espumantes serão bem-vindos, se fizer calor. Mais os brancos simples, os tintos despretensiosos, o rosé trazido pelo convidado de última hora.
Se não houver preconceito, algo vendido em maior volume, uma bag in box, com torneirinha, que permite fartura e auto-serviço rápido. Vetado: falar de taninos, harmonização, nomes de uvas, enochatice e esnobismo. Beba vinhos e celebre.
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Divulgação | ||
Vinhos da semana
(1) Niepoort Senior Tawny, R$ 189 (Vinci Vinhos).
(2) Taylor's Fine Tawny, R$ 115 (Qualimpor).
(3) Quinta do Infantado Tawny Port, R$ 104 (Premium Wines).
(4) Terras de Xisto (5 litros), R$ 193 (Adega Alentejana).
*valores de referência