Folha de S. Paulo


Um dos meus pratos favoritos, steak tartare não esconde o sabor da carne crua

Gabriel Cabral/Folhapress
São Paulo, SP, Brasil, 03-06-2015: Steak Tartare do Ici Bistro. (foto Gabreil Cabral/Folhapress)
Steak Tartare do Ici Bistro

Quando eu era criança, só frutas e legumes eram comidos crus. Qualquer coisa de origem animal era consumido no ponto "bem passado", que significava quase queimado, calcinado, algo que faria a felicidade do chef argentino Francis Malmann. Nem se pensava em peixe cru, muito menos carnes vermelhas.

É fácil entender, sou um montanhês, da cultura alimentar baseada nos suínos. E porco não se come cru, como todo mundo sabe, por razões sanitárias —ou pelo menos era assim. Um lombo mais rosado já causava pânico na mesa, um sentimento de morte iminente, o pavor.

Mas o tempo passou, vieram os restaurantes japoneses, os sushis, sashimis e também o kibe cru. Finalmente apareceu um prato de bistrô francês que vai virando onipresente (e um dos meus favoritos): o steak tartare.

Os livrões consultados confirmam sua origem incerta. Todos eles descartam aqueles simpáticos mitos, que eram comida dos tártaros. Os franceses gostam de lugares longínquos, em geral imaginários. O bife cortado na ponta da faca (a carne moída em máquina muda a textura), temperado fortemente, deve ter nascido em alguma cozinha chique de hotel de luxo, mas é mais exótico atribuir a receita a um bárbaro de terras remotas e sentir um calafrio de atrevimento no seu consumo.

Uma vez, em 2015, em Paris, fui ao mais famoso açougueiro da cidade, que fornece carnes para três dezenas de estrelas "Michelin" (a lista de restaurantes que somam este número está exibida na porta, com orgulho) e seu tartare foi considerado o melhor, naquele ano. Come-se ali mesmo no açougue de Hugo Desnoyer, no esnobe bairro de Auteuil, em uns poucos balcões encostados num canto. O preparo começa só quando o pedido é feito, levou mais de meia hora. Parece um exagero para um montinho de carne crua —era pura carne com toque delicado de tempero e sem o famoso ovo cru por cima.

O tartare é um destes pratos que não sabem mentir, se a carne não for excelente, será insuportável. Dizem que os erros da cozinha são cobertos por molhos cremosos. Ao tartare resta só ser muito temperado, mas então perde seu valor.

Por aqui, gosto do que faz Benny Novak no Ici Bistrô. Levou muito tempo arredondando a fórmula até chegar ao delicioso. O gosto de carne está lá, o tempero também, mas timidamente, envergonhado de alterar o sabor sanguinolento (não é esta a palavra, não sei como descrever o prazer de sentir o sabor meio brutal da carne in natura) do steak picado. Por cima, um ovo de codorna, que se mistura ou não à carne. É só isso, expressão pura do ingrediente. O sashimi ocidental, talvez?

ICI BISTRÔ
ONDE rua Pará, 36, Higienópolis, tel. 3259-6896.
QUANDO seg. a qui., 12h às 15h e 19h às 24h; sex., 12h às 15h e 19h à 0h30; sáb., 12h30 às 16h e 19h30 à 0h30, e dom., 12h30 às 17h.

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Acidinhos
Os vinhos não têm grandes problemas com carnes nem com coisas cruas, mas ficam pensativos diante dos temperos que acompanham os pratos. Mostardas, raiz forte, cebola, sabores picantes e toques ácidos. O melhor é esquecer de carnes ou peixes e pensar numa palavra: acidez. A comida leva vinagre e limão? Melhor matar a sede com líquidos igualmente acidinhos, vivazes, refrescantes. E vinhos frutados, que podem ser bebidos em goles amplos. Estamos na temporada do Beaujolais-Nouveau, o tipo de vinho para acompanhar um tartare, até por ser bebido frio e também pela seu descompromisso com grandes refeições. E nada simula melhor um bistrô parisiense que o trio: taça de Beaujolais, steak tartare e fritas.

O drama do Beaujolais
Tenho certeza de que ao ler Beaujolais-Nouveau diversas testas franziram: "Lá vem este equivocado recomendar vinho ruim". A culpa não é minha, mas de alguns produtores da região de Beaujolais que tiveram a brilhante (sem ironia) ideia de marketing de lançar o vinho do ano, que sempre existiu como o primeiro vinho da região, engarrafado logo após ficar pronto, com uma festa no mundo todo. O problema começou quando a facilidade para vender esses vinhos foi fazendo a qualidade decair sem parar. Mas houve um movimento de recuperação, hoje há excelentes produtos, continuam joviais, para beber logo, em maior volume que o habitual, quase gelado. Só que este lado alegre não compromete a seriedade do vinho bom. E a festa continua.

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Divulgação
Vinhos - coluna luiz horta - arsão0412

Vinhos da semana
(1) Domaine des Pothiers, Clos du Puy, R$ 156 (Garrafa Livre).
(2) La Part du Colibri Gamay, R$ 87 (De La Croix).
(3) Dal Pizzol Gamay Beaujolais, R$ 51 (Vinhos & Vinhos).
(4) Salton Gamay, R$ 25 (Salton).

*valores de referência


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