Folha de S. Paulo


Quase setentão, restaurante libanês resiste à profusão de 'fast-arabs' em SP

Quando viajo, faz falta a comida árabe, que, fora daqui, não coincide com o nome. Sempre me intrigou a denominação genérica "árabe" dada a pratos do Levante. Os livrões me confirmam: o que chamamos de árabe, o quibe, por exemplo, aparece no Líbano, Síria, Israel, Irã, Egito, não na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuait.

Antes de me sentar para comer, encafifado com a denominação, escrevi para Anissa Helou, grande especialista nas comidas do seu Líbano natal. Ela não soube explicar a razão de batizarmos de árabe o que não é. Ficou com a possibilidade da confusão sobre a origem dos primeiros imigrantes de um certo Oriente.

Concordo. Tenho amigos cujos avós eram "turcos", apesar de judeus da Palestina, pelo passaporte com que chegaram ao Brasil, que trazia a estampa do Império Otomano. Prefiro, então, dizer comida libanesa.

Meu libanês favorito é a Brasserie Victória, que aumenta a confusão com a classificação francesa. Na França, as brasseries são grandes cervejarias, em geral tocadas por alsacianos, sempre com chucrute e embutidos.

Marcos Briquet/Divulgação
Folhas de uva da Brasserie Victória
Folhas de uva da Brasserie Victória

Na Brasserie Victória não há brassagem, nem comida da Alsácia. O nome francês denota a origem libanesa de dona Victória. Ela não está mais lá, controlando o movimento e cumprimentando com a cabeça, as mãos sempre ocupadas. Mas a comida continua igual.

Nascido na rua 25 de Março, o restaurante e lanchonete (e agora delivery) tem quase sete décadas. Mudou para a Juscelino Kubitschek nos anos 1980, onde suportou a reforma da avenida na década seguinte, além da profusão de "fast-arabs" de baixa qualidade pela cidade. Se dona Victória soubesse que hoje existe por aí até esfirra de feijoada, quibe de soja.

É um ambiente enorme, convivial e há mesas para famílias grandes. Não tem o ar Disneylândia de falso Oriente de muitos restaurantes árabes, nem o charme de clube de jazz de Marrocos, como o velho Almanara do centro paulistano. É um ambiente funcional, voltado para a eficiência em servir muita comida com rapidez.

E tem o melhor quibe cru que já comi, além de charutinhos de uva próximos do nirvana do palato.

Quibe cru é algo complicado, pode ser muito sem sabor ou ter temperos demais. O da Victória é saboroso, deixa a carne brilhar e não pede correção de sal ou pimenta. Tem uma textura moldável e granulada, com maciez e umidade. Uma perfeição.

Leio que o "kibbeh nayeh" (quibe cru), pela complexidade e delicadeza do preparo e a exigência da melhor carne, é reservado às demonstrações de hospitalidade, servido aos convidados de honra. Dona Victória nos homenageia com esse prato.

Ah, vou me arrepender da afirmação, pois entrarei em terreno de intensa disputa, mas o faláfel da Victória não tem igual por aqui.

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HALAWI
Gosto de doces estranhos, que lembram à língua que ela também é tátil. Halawi parece um pequeno pedaço de parede ou uma lasca de ardósia que vai se desfazendo em escamas. Faz croque na mordida e se desfaz, quase impossível de segurar. Não é doce demais, tem aquele misterioso salgadinho do gergelim, praticamente uma paçoquinha.

Brasserie Victória. Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 545, Vila Nova Conceição; tel. 3040-8897 e 3849-8449 (delivery). Seg., das 12h às 16h; de ter. a sáb., das 12h às 22h; dom., das 12h às 21h

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OS GRANDES DO LÍBANO
Vinhos libaneses existem e são excelentes. O Château Musar é um dos grandes do mundo. A família Hochar produziu em condições extremas, durante a guerra civil de 1975 a 1990. Nunca saltou uma safra. Podia ser só uma linda história se os vinhos não fossem excelentes. O problema é que são caros, raros e desejados.

Sugiro aqui os mais simples. O vale do Bekaa é a "Bordeaux libanesa". As uvas são as clássicas francesas e até o uso do nome "château" para as propriedades indica a semelhança. Os vinhos são também longevos. Os tintos ficam melhores passando alguns anos guardados.

Para ficar perto no mesmo corte de uvas, acrescento dois vinhos da África, um ótimo chardonnay sem madeira da Neethlingshof, vinícola afrancesada da região de Stellenbosch, e o Cabernet Sauvignon da Nederburg.

Só estou "falando vinhês" por terem me pedido um pouco de explicação das escolhas, prometo não cair no papo de "enochato".

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