Folha de S. Paulo


Melhor hambúrguer gourmetizado de SP é de casa japonesa na Liberdade

Camila Svenson/Folhapress
São Paulo, SP, 30.08.2016; Teishoku com hamburguer no restaurante japonês Kidoairaku (Camila Svenson/Folhapress)
Teishoku com hambúrguer no restaurante japonês Kidoairaku

Algo que virou moda nos últimos anos foi o hambúrguer gourmetizado. Com foie gras, pães especiais, molhos secretos, invenções originais ou recriadas, acertos e exageros.

Mas, se for pressionado a dizer qual o meu favorito, vou surpreender na resposta: é o do Kidoairaku, um restaurante japonês escondido na Liberdade e fixado num ritmo de outro fuso horário, impossível de atrapalhar.

Não reserva, não faz concessões. Se está frio, faz uma disputada e desejada barriga de porco –mas tem que estar um clima frio realmente estável; ameaçou esquentar, o prato desaparece do cardápio.

Tem uma berinjela no missô impressionante, algo que parece tão simples, que tento refazer em casa inutilmente (dá trabalho ser simples daquele jeito).

Estive lá com o crítico francês François Simon, do "Le Monde". Ele é insondável, mas pareceu estar se perguntando: "O que estou fazendo aqui?". Depois, grande apaixonado pelo Japão, listou o pequeno negócio familiar no seu artigo sobre a São Paulo nipônica, junto com os reconhecidos titãs do assunto –ele captou a mensagem do lugar.

Frequento a casa há dez anos. Ela fica numa esquina (agora) iluminada, mas sempre que chego me lembro de uma pintura de Hopper, aquela portinha como última esperança, a tensão de filme noir, uma espécie de expectativa de que algo terrível vai acontecer, o ambiente soturno e a luz, ali dentro, como salvação. Entro e suspiro, consegui! Saio do mundo real e estou num canto de algum lugar entre Tóquio e Quioto.

Sempre parece que estou atrapalhando um pouco o ritmo da família, que permite que eu coma na sua sala. Houve um momento em que se abriu aos foodies, foi "descoberto" e chegaram os curiosos, anos atrás. Agora, voltou a ser um segredo de boa comida, para iniciados (tradução: japoneses que vão até lá para matar a saudade de casa).

E o hambúrguer? Ele é parte do teishoku, uma refeição completa –que é o estilo da casa– em que se escolhe a carne ou peixe, anchova, peixe prego, porco à milanesa ou o tal hambúrguer.

"É hambúrguer de japonês, as pessoas não entendem muito" diz, no seu tom sempre educado, a suave Luciana, mulher do chef e chefe de sala (ou dona da casa, se lembrarmos que eles moram ali).

Um bolo de carne com molho espesso, saboroso, de tamanho ameboide e para comer com hashi, sem pão –quase o que minha mãe fazia e se chamava "bife hamburguês". Vou até lá, como os executivos japoneses que relaxam no fim do dia, recuperar um sabor da infância; eles, o da família deixada no seu país, eu, o meu bifão de carne moída, moldado à mão, sem compromisso com o modelo americano.

KIDOAIRAKU
Onde R. São Joaquim, 394, Liberdade, tel. 3207-8569
Quando Seg. a sex., das 11h30 às 13h45 e das 18h30 às 22h; sáb. das 11h30 às 13h45 e das 18h30 às 21h

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Descabido
Muito tempo atrás, quando eu era ingênuo, achava que ia salvar o mundo por meio do vinho, que compartilhar este prazer faria os lugares melhores –vinho combinava com tudo, era o amigo de todas as refeições. Acho que eu era arrogante, não ingênuo, me julguem, um enochato típico. Levei para o Kidoairaku taças Riedel, ia sempre com garrafas, insistia. Hoje, entendi: aquela comida precisa do que a acompanha perfeitamente, chá verde quente ou gelado, ou uma dose de shochu. Agora, tenho minha garrafa na prateleira, em que está escrito "Senhor Horta". Nunca bebo dela, é um troféu, uma condecoração estar ali galardoado. Tenho meu uiscão puro malte nomeado, sinto que atingi um patamar de adulto. Recomendo aí nos vinhos da semana quatro garrafas provadas, de bom preço. Mas nem tente levar para o restaurante, seria impertinente, no sentido mesmo da palavra: descabido, que não pertence.

O teishoku
Teishoku não é um prato feito. É uma refeição completa, em que o chef mostra todo seu talento, disfarçado como uma coisa trivial. A coisa é complicada, envolve a arte oriental da cópia de modelos que vão se aperfeiçoando. Sem entrar em detalhes, num teishoku tem conserva picante e adocicada, caldo e arroz, equilíbrio e uma permissão para o chef (figura de autor tão ocidental, que não cabe ali) se manifestar.

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Vinhos da semana *
(1) Château Prieuré Lescours, Casa do Porto (R$ 144). (2) Château Beauregard-Ducourt, Mistral (R$110). (3) Quinta da Alorna branco, Adega Alentejana (R$ 74). (4) Undurraga Cabernet Sauvignon, Inovini (R$ 46).

* valores de referência


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