Folha de S. Paulo


Ovos, um dos pilares da alta cozinha, dão forma a suflês fumegantes

Um cartum da revista "The New Yorker" mostrava uma galinha toda faceira acabando de descer de um disco voador em forma de ovo frito. Para aquela grande dúvida existencial da humanidade —"quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?"— o cartunista sugere que ambos vieram do espaço, são extraterrestres. Eu até acredito, pois, para mim, ovo é um dos produtos fascinantes da natureza.

É de design perfeito, é totalmente portátil, a embalagem é coisa de gênio e é bom de todo jeito. Assume o papel necessário, vira doce, vira salgado, sanduíche, bolovo e é gostoso até apenas cozido e com uma pitadona de sal. Mas somos chiques aqui na coluna, então quero falar de ovo na cozinha, e não de sua beleza plástica e perfeição.

O ovo é um dos pilares da alta gastronomia. Dele, saem as omeletes, o molho maionese e os suflês. O que seria da cozinha francesa sem o ovo?

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Não faça isso em casa
Não faça isso em casa

A lenda urbana diz que grandes chefs, como Ducasse e Robuchon, pedem que os candidatos façam uma omelete em entrevistas de emprego. Já é a prova de técnica e conhecimento: errou ali, dançou. Costumo fazer a minha com queijo. Também tenho o descaramento de bater maionese caseira no braço, usando o fouet, aquela batedeira em que você é o motor. São comíveis, e não me orgulho nem me envergonho delas (da maionese, me pavoneio sim). Mas não ouso cometer suflês, ainda.

Fui atrás do melhor artesão do ovo cheio de ar, Raphael Despirite, cujo restaurante, Marcel, está na sexta década. Lá, reinam os suflês clássicos, começados pelo avô Jean Durand (um francês de Lyon), como o de gruyére, o doce Grand Marnier e o Maison, criado por Durand em 1970 com queijo, camarões e cogumelos. Há também os novos, como o de bacalhau e o de cupuaçu (meu favorito entre os suflês doces).

Raphael conta que são três ovos por suflê, e eles usam 2160 ovos por semana (sim, tem número certo); provo alguns, falamos do Mateuzão, que se aposentava naquele dia, depois de 20 anos de casa. Como monsieur Durand fazia, Mateus também tira suflês fumegantes do forno sem luvas. De técnica nada conversamos, pois o único truque é não deixar murchar. A cena típica de comédia romântica norte-americana: Lucille Ball ou Doris Day com um lindo suflê quente e algo bate, a porta, um vento e a coisa desaba.

Para isto não acontecer, me diz o Larousse Gastronomique, é preciso misturar delicadamente as claras em neve, ter uma fonte de calor eficaz e estável (tradução: bom forno) e evitar os choques, no que confirma os filmes água com açúcar.

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VINHOS DA SEMANA

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(1) Chablis Christian Moreau R$ 214 (Premium)
(2) Locura 1 Clos de Fous R$ 148 (World Wine)
(3) Aurora Chardonnay Pinto Bandeira R$ 63 (Vinhos e Vinhos)
(4) Santa Alvara Lapostolle Chardonnay R$46 (Mistral)

* valores de referência

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A LEI DE CHARLES

Harold McGee não deixa pergunta sem resposta no seu "Comida e Cozinha". Explica, com ilustrações, que "algumas décadas antes da invenção do suflê, a lei física que o anima foi descoberta por um cientista e balonista francês —como não poderia deixar de ser— chamado J. A. C. Charles". A lei de Charles estabelece que o volume de uma massa de gás é proporcional à sua temperatura. O ar aquecido infla balões, as bolhas de ar das claras em neve, colocadas no forno, crescem e incham, expandindo a mistura para a "única direção que lhe resta, para cima e para fora da fôrma". Um dado curioso: um suflê murcho, se recolocado no forno, deve voltar a crescer, em menor escala.

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VINHO E OVO, UM DILEMA

Na vasta lista de problemas para os vinhos (esqueçam estas listas, pois dão a impressão de que nada combina com vinho, de aspargos a zebu) sempre alguém diz: "Ovo é complicado para combinar com vinho". Na minha experiência, tem vinhos que se chocam um pouco, mas depois da terceira taça tudo dá certo com tudo, pode crer. Ovos mais singelos, fritos, por exemplo, ficam bons com um jerez fino gelado, mas suflê de queijo eu gosto com brancos de acidez proeminente e que fazem encher a boca de água: Chardonnays bem secos. Escolhi alguns acima. Meu favorito seria o Chablis do Christian Moreau —um acontecimento— com suflê de gruyère, mas ainda não é meu aniversário.


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