Folha de S. Paulo


A feiura das cidades brasileiras resulta de uma equação estética e moral

A reação imediata do ministro dos Esportes Leonardo Picciani à notícia do assalto dos nadadores norte-americanos caiu no esquecimento porque o papelão farsesco das "vítimas", que tão bem fez à autoestima brasileira e ao lema "ordem e progresso", logo se revelaria. Para o esperto e volúvel deputado carioca (líder de Dilma e aliado de Temer), Ryan Lochte e seus parceiros de piscina teriam sido atacados por estarem em local impróprio. Eles retornavam da Lagoa Rodrigo de Freitas para a Vila dos Atletas.

Impróprio?

Governantes brasileiros "sempre sonharam em eliminar as ruas", ressalta o também norte-americano Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector e tradutor de suas obras, no pequeno livro de ensaios "Autoimperialismo".

No desfile ao som de "Garota de Ipanema", na abertura da Olimpíada, a modelo Gisele Bündchen flutua por uma superfície celestial, infinita, intangível, não por uma calçada de pedras portuguesas.

Para Moser, o medo das ruas da antiga capital do Brasil, suas surpresas e suas distrações, explica a criação de Brasília, cidade cartesiana e cercada por um cordão sanitário que arremessa a população pobre para distantes e esquecidas concentrações satélites.

O ensaísta é bastante severo com o ícone da arquitetura brasileira, Oscar Niemeyer e sua vocação totalitária ("nunca conseguiu dizer não a um tirano", "era oficialmente de esquerda, mas sua admiração por ditaduras militares não diferia da afeição que lhes dispensava a direita"), e percebe "olhares estrangeiros são importantes" o que a paisagem de Brasília, onde "é preciso pegar um táxi para atravessar a rua", muito além do vazio que aparentemente se contempla, tem de claustrofóbico e inóspito.

O que torna o Rio de Janeiro uma cidade bonita e interessante, apesar do "apartheid" social, da poluição das águas, da Barra da Tijuca e da temperatura hostil, é a generosidade de suas calçadas. Por alguma razão e em certa medida, o Rio de Janeiro tem resistido ao instinto destruidor dos governantes. Outras cidades sucumbem.

A feiura profunda das cidades brasileiras é resultante de uma equação estética e moral. Constroem estádios e deixam de lado o saneamento. Mutilam árvores para proteger fiações. Alargam avenidas, criam faixas de ônibus ou as simpáticas ciclovias, sacrificando sempre o diminuto espaço destinado aos pedestres.

Passeios públicos são esburacados, sujos e repelentes porque shoppings centers, também opressivos, já cumprem a função de oferecer corredores privatizados, climatizados, pacificados, vigiados e repletos de ofertas de consumo.

A estranha pintura de estreitas faixas verdes sobre o asfalto na cidade de São Paulo, para "atenuar" o desconforto de pedestres apertados, sintetiza a concepção mesquinha e caricatural das autoridades: tinta em vez de sombra, locais de passagem e não de permanência, ruas como sinal de alerta e perigo.

Iniciada a corrida eleitoral para as prefeituras, não há planos para a mais singela de todas as questões da mobilidade urbana: ampliar e recuperar calçadas. E se aparecerem, permanecerão no papel. Os candidatos sabem que os eleitores são motoristas, não cidadãos.

A ausência de bom gosto e de beleza parece irreversível.


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